Emile Zola, morto por escrever e falar umas verdades...?!
Émile-Édouard-Charles-Antoine Zola (1840–1902) não era apenas o autor de Germinal. Era uma usina de verdades inconvenientes: naturalista por vocação e incendiário por necessidade moral. Viveu num tempo em que o Estado fabricava mentiras com selo de autenticidade e a verdade precisava de megafone — e Zola, naturalmente, pegou o megafone. (ZOLA, 1898; BRITANNICA, s.d.)
Sua carreira começou nos romances, com a monumental série Les Rougon-Macquart, um verdadeiro laboratório de vícios humanos e dissecções sociais. Ali ele retratou o indivíduo como produto da herança e do meio — uma espécie de bicho domesticado pela estrutura social. Mas em 1898, o escritor ultrapassou a fronteira da literatura e foi parar no epicentro da política. Com J’accuse…! — a carta aberta ao presidente Félix Faure publicada no jornal L’Aurore —, Zola transformou tinta em pólvora. Denunciou o Exército e a Justiça por condenarem injustamente o capitão Alfred Dreyfus, vítima do antissemitismo institucional da Terceira República (ZOLA, 1898; COSTA, 2021). O gesto foi um tiro de canhão em plena Paris: o primeiro grande ato público de um “intelectual engajado”.
A força do texto estava na clareza brutal. Zola citou nomes, cargos e crimes — não deixou espaço para o conforto da dúvida. O Estado reagiu com seu instinto predador habitual: processou-o por difamação, condenou-o a um ano de prisão e o obrigou ao exílio em Londres (BOTELHO, 2013). Mesmo longe, Zola continuou escrevendo. Sua pena manteve o caso Dreyfus vivo até que a revisão judicial se tornasse inevitável. Quando retornou à França, não era mais só um escritor, mas um símbolo: o homem que preferiu perder tudo a engolir a injustiça.
O mesmo Zola que peitava generais também cutucava o clero. Em 1892, foi a Lourdes observar os “milagres” de cura. O resultado foi Lourdes (1894), um romance-relato onde ele mistura testemunho, crítica e ironia. Viu curas, registrou emoções, mas recusou-se a chamar o inexplicável de divino. Segundo ele, os milagres não passavam de lapsos fisiológicos — e ainda zombou das “curas” que morreram logo depois. Uma das mulheres retratadas, ofendida, passou anos escrevendo à imprensa para provar que estava viva e saudável (ZOLA, 1894; TORRES, 2010). Zola, imperturbável, seguiu descrevendo o fanatismo com o mesmo rigor com que analisava as vísceras humanas.
Em 29 de setembro de 1902, Zola foi encontrado morto em seu apartamento da Rue de Bruxelles, vítima de intoxicação por monóxido de carbono. O veredito oficial: acidente doméstico causado por uma chaminé defeituosa. A versão não oficial: assassinato. Ele havia afrontado militares, religiosos e políticos — uma tríade que, quando contrariada, costuma produzir cadáveres. Décadas depois, um pedreiro afirmou ter bloqueado a chaminé a mando de nacionalistas (BOTELHO, 2013). Nunca houve prova, mas a suspeita persiste como toda boa conspiração histórica.
Seja como for, o Estado que o condenara em vida resolveu homenageá-lo em morte. Em 1908, as cinzas de Zola foram transferidas para o Panthéon, ao lado de Victor Hugo e Alexandre Dumas. O gesto era nobre — e hipócrita. Afinal, o mesmo país que o exilou agora o santificava em mármore (COSTA, 2021). Durante a cerimônia, um fanático tentou assassinar o já reabilitado Dreyfus, como se o ódio quisesse lembrar que a França, mesmo quando pede desculpas, nunca perde o costume de atirar.
Zola incomodava porque dizia o óbvio em voz alta. Apontava a podridão institucional, a cumplicidade da imprensa e o moralismo cego que alimenta as engrenagens do poder. Sua frase “Que o inquérito se dê à luz do dia!” (ZOLA, 1898) era quase um insulto num país habituado à penumbra da conveniência. E ele não tinha paciência para metáforas conciliatórias — preferia a frontalidade. A cada texto, criava novos inimigos: generais, editores, padres, políticos. Zola não dividia o mundo entre bons e maus, mas entre quem encara e quem se cala.
A verdade, para ele, tinha preço — e alto. Falar significava ser processado, exilado, ameaçado e, possivelmente, morto. É o tipo de contrato que poucos assinam em sã consciência. A coragem dele abre duas perguntas que atravessam séculos: a verdade vale o sacrifício? E existe momento “seguro” para dizê-la? No caso Dreyfus, valeu: a reabilitação de 1906 mostrou que o escândalo literário podia reescrever a história. Mas o custo pessoal foi devastador.
Hoje, a fogueira mudou de formato. A censura veste terno digital e o Index Prohibitorum virou algoritmo. Não queimam livros — enterram perfis. A morte simbólica substituiu a física, mas o mecanismo é o mesmo: quem fala o que não deve perde espaço, visibilidade, voz. A verdade virou conteúdo “de baixo engajamento”. O império da conveniência aprendeu a silenciar sem sangue, e por isso é mais eficiente.
Arriscar a verdade continua sendo um ofício sem seguro. Zola escolheu ser faísca onde tantos preferem o morno. Pagou o preço, mas deixou um rastro luminoso. Sua história lembra que a verdade pode até salvar o mundo — mas dificilmente salva quem a diz. O escritor francês morreu sufocado, talvez não pelo gás, mas pelo ar rarefeito da hipocrisia. E, no fim, o Estado que o silenciou acendeu uma vela em sua homenagem — com o fogo que ele mesmo acendera.
E. E-Kan
E. E-Kan
Referências
BOTELHO, Márcio de Pinho. O processo Dreyfus e a imprensa: trajetórias e repercussões. Tese (Doutorado) — Universidade de São Paulo, 2013. Disponível em: https://teses.usp.br. Acesso em: 25 out. 2025.
COSTA, R. C. “Do intelectual do caso Dreyfus ao intelectual orgânico”. Revista Fundação Cultural (SciELO), 2021. Disponível em: https://educa.fcc.org.br/scielo.php . Acesso em: 25 out. 2025.
ZOLA, Émile. J’accuse…! (Carta a Félix Faure). L’Aurore, Paris, 13 jan. 1898. Disponível em: Project Gutenberg. Acesso em: 25 out. 2025.
ZOLA, Émile. Lourdes. Paris, 1894. Disponível em: Project Gutenberg. Acesso em: 25 out. 2025.
“J’accuse”. Encyclopaedia Britannica. (s.d.). Disponível em: https://www.britannica.com/topic/Jaccuse. Acesso em: 25 out. 2025.






Comentários
Postar um comentário