O que o (alho) historicismo tem a ver com o (bugalho) o materialismo histórico?
O historicismo foi uma das bases mais importantes para a consolidação da História como disciplina científica no século XIX. Surgiu na Alemanha, num contexto em que os intelectuais buscavam dar à História o mesmo rigor das ciências naturais. Pensadores como Leopold von Ranke e Wilhelm Dilthey defenderam que o papel do historiador era compreender cada época em seus próprios termos, sem julgamentos anacrônicos. Para o historicismo, cada período histórico é singular, dotado de uma lógica interna e de valores específicos, que precisam ser entendidos dentro de seu contexto.
A ideia central do historicismo é que a realidade histórica não pode ser reduzida a leis gerais. Cada sociedade possui um “espírito do tempo” — uma combinação de cultura, ideias e instituições — que a define. Assim, o conhecimento histórico deve se apoiar em fontes, documentos e testemunhos, para reconstruir o passado tal como ele realmente ocorreu. Essa proposta trouxe um avanço decisivo para a pesquisa histórica, pois exigiu método, crítica das fontes e respeito ao contexto. Entretanto, o historicismo tinha uma limitação fundamental: sua tendência ao descritivismo e à neutralidade. Ao concentrar-se em narrar e compreender, esquecia-se de explicar as causas profundas das transformações sociais.
O materialismo histórico, formulado por Karl Marx e Friedrich Engels em meados do século XIX, surge como uma crítica direta a essa limitação. Para eles, a história não é movida por ideias ou por um “espírito do tempo”, mas pelas condições materiais de existência dos homens. Em outras palavras, é o modo como as pessoas produzem sua vida — o trabalho, a técnica, a economia — que determina as formas de pensamento, as instituições e as crenças. Marx e Engels inverteram o ponto de vista idealista de Hegel: não é a consciência que define a vida, mas a vida social que define a consciência.
O materialismo histórico introduz, assim, uma visão dinâmica e conflitiva da história. Toda sociedade está estruturada em torno de um modo de produção — escravista, feudal, capitalista — que cria relações de dominação entre classes sociais. Quando essas relações entram em contradição com o desenvolvimento das forças produtivas, surgem as crises e as revoluções. A história é, portanto, o resultado da luta entre classes que disputam o controle dos meios de produção. Esse conflito não é apenas econômico, mas também político e cultural, pois influencia as leis, as religiões, a arte e as ideias dominantes de cada época.
Enquanto o historicismo concebia a história como um conjunto de eventos isolados, o materialismo histórico a compreende como um processo contínuo, regido por leis sociais e econômicas. O primeiro se limitava a observar o passado; o segundo buscava revelar os mecanismos de transformação da sociedade. Para Marx, não basta interpretar o mundo: é preciso transformá-lo. Por isso, o materialismo histórico combina teoria e prática, reflexão e ação, tornando-se uma ferramenta de crítica social.
A diferença essencial entre essas duas concepções está no ponto de partida. O historicismo parte das ideias e valores para compreender os fatos; o materialismo histórico parte das condições concretas da vida e das relações de produção. No primeiro, a consciência cria a realidade; no segundo, é a realidade que forma a consciência. Essa inversão muda completamente a forma de se fazer História, pois coloca o trabalhador, e não o herói ou o governante, como protagonista do processo histórico.
Apesar das diferenças, o historicismo e o materialismo histórico se complementam em certo sentido. O primeiro consolidou a história como campo científico, ensinando o valor da crítica documental e da contextualização; o segundo deu à história um caráter explicativo e revolucionário, mostrando que toda estrutura social é histórica e, portanto, transformável. A partir deles, o historiador deixou de ser apenas um contador de fatos e passou a ser um intérprete das forças que movem a humanidade.
Assim, compreender o debate entre historicismo e materialismo histórico é entender duas formas distintas de pensar o tempo: uma que busca conservar e compreender, e outra que pretende explicar e transformar. Ambas contribuíram para fazer da história não apenas a memória dos homens, mas também o conhecimento das razões pelas quais o mundo é como é — e de como pode vir a ser diferente.
No duelo entre historicismo e materialismo dialético, a grande questão é: qual a melhor forma de encarar a realidade? Pelas ideias? Pela prática sobre as ideias? Ou pelas duas ao mesmo tempo? Ou sei lá… (claro, todo mundo ali querendo se mostrar o gênio da vez, como se tivesse acabado de inventar a roda da história humana, que já é tragicômica por si só). Com efeito, o historicismo olha o mundo com a cabeça, o materialismo histórico com o estômago, e a visão dialética decente percebe que a gente pensa com a cabeça que o estômago alimenta. A vida real, meus amigos, é sempre muito mais bagunçada, visceral, brutal, barulhenta e complexa do que os teóricos problematizam.
___E. E-Kan
Referências:
ALBUQUERQUE JÚNIOR, Durval Muniz de. O historicismo alemão, revisto desde o Brasil. História da Historiografia, Ouro Preto, n. 3, p. 188‑193, set. 2009.
PRADO, Hugo Araújo. A abordagem de Hannah Arendt sobre as Ciências Sociais: o historicismo alemão, o funcionalismo e o comportamentalismo. Revista do CAAP, v. 28, 2023.
CUNHA, Marcelo Durão Rodrigues da; NICODEMO, Thiago Lima. Sentido e historicidade nos trópicos: Sérgio Buarque de Holanda e as aporias do historicismo. Revista de História, São Paulo, n. 182, 2023.





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