ESTUDOS: TRADUÇÃO E LEITURA DO LIVRO 'LENDAS INFERNAIS' , DE J. A. S. COLLIN DE PLANCY

Como todo trabalhador cerebral, entusiasta de livros antigos, sobretudo, curioso do tipo que não desiste nunca de ler o que deseja ler, ainda que demore um tempo devido às guerras diárias pela sobrevivência nesse mundo cão, os afazeres e as andanças da vida real, iniciei a tradução e leitura do presente livro, escrito por um Católico, muito criativo e inventivo em sua escrita sobre os Demônios, os pactos e como era a convivência dos humanos com tais seres. Essa temática da Demonologia, embora, alguns digam que se trata de mera invencioníce da cabeça do ser humano, sempre me chamou alguma atenção. Vejo esse tipo de leitura como uma boa distração e uma fonte de aprimoramento da erudição, já que, embora tratemos de textos do século XIX (1801 a 1900), com autores que pensam o passado com os olhos do presente, eles trazem muitas coisas interessantes de antes da Alta Idade Média, dos primeiros momentos do Cristianismo, o chamado Cristianimo Primitivo (33d.C a 315 d.C).  É claro que há muita coisa enviesada e tudo deve ser lido e estudado com a máxima cautela, mas trata-se, para mim, de um estudo-distração de grande importância. Sem mais delongas, sigamos para o texto traduzido. Observação: se alguém precisar do PDF original em Francês, manda email: territoriokaoficial@gmail.com 


LENDAS

INFERNAIS

RELATOS E FATOS
DOS HÓSPEDES DO INFERNO COM A ESPÉCIE HUMANA,

POR

Aprovado por Sua Grandeza Dom, o Bispo de Arras, de Boulogne e de Saint-Omer.

(Ilustração)

PARIS

HENRI PLON, IMPRESSOR-EDITOR,
RUA GARANCIÈRE, 8.


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LENDAS
INFERNAIS.
I. — PREÂMBULO. — A CIDADE DO DIABO.

Ninguém pode servir a dois senhores.
S. MATEUS, cap. VI, v. 24.
Vosso adversário, o Diabo, como um leão que ruge, anda em derredor, procurando a quem devorar.
S. PEDRO, Epístola I, cap. V, v. 8.

Santo Agostinho, ao apresentar às nossas meditações a Cidade de Deus, isto é, aquela parte da raça humana que não se desviou, mostra-nos junto dela, muitas vezes ao seu redor, e em número muito maior, a Cidade do diabo, isto é, essa outra porção, invasora e tumultuada, da mesma origem, que esqueceu, ou desertou, ou traiu, ou renegou os direitos e os deveres de sua origem, para seguir um estandarte erguido contra Deus.

A queda de Adão, que de Deus, de quem tinha o amor e de quem recebia o ser, desceu ao demônio, de quem tinha apenas o ódio e de quem nada podia esperar, estabeleceu o reino de Satanás sobre a terra.

Mas Deus, embora lamentasse, em um sentido que não podemos compreender, ter feito o homem, como se lê nas Santas Escrituras, ainda assim o amava, pois, mesmo ao repelir Adão, prometeu-lhe um reparador. Contudo, deixou o homem entregue a si mesmo e às insinuações daquele a quem ele havia aberto as portas de sua alma. Quis ser honrado por uma criatura livre; e desde então pôde-se ver a que excessos vergonhosos os homens se deixaram arrastar.

Depois de purificá-los pelo dilúvio, Deus viu os mesmos excessos se reproduzirem, e foi-lhe necessário escolher em Abraão o tronco de um povo que fosse seu.

Fora do povo escolhido, que Satanás, no entanto, atacou mais de uma vez, Deus já não teve altares sobre a terra; o reino do demônio estendeu-se por toda parte, sob todas as formas; aquilo que o homem deveria odiar foi adorado. O céu permanecia, portanto, fechado, quando a misericórdia de Deus enviou o Redentor.

Ele teve compaixão da humanidade aviltada, e conhece-se o resto. O Salvador, para libertar o homem dos laços pelos quais o pecado original o entregou a Satanás, instituiu o batismo. Todo homem que não o recebeu é, portanto, súdito de Satanás, e é por isso que a criança recém-nascida só entra na igreja após os exorcismos que a separam do espírito das trevas.

Vê-se que a Cidade do diabo ainda é imensamente grande. Nos primeiros tempos, Satanás, invejoso do homem e seu inimigo, cercou-o sem cessar. Podem-se ler, nas lendas do Antigo Testamento, suas tentativas junto a Adão, seus êxitos junto a Caim e entre aqueles dos primeiros homens que a Bíblia chama de gigantes. Ele inspira Cam, o amaldiçoado; estabelece monstruosas idolatrias; no povo escolhido, ataca o próprio Moisés, Saul, Davi, Salomão. Entre os justos, então raros, tenta Jó. Consegue fazer erguer altares por toda parte; e se fossem reunidas as lendas dos cultos nascidos de seu sopro, delas se faria um livro sem fim.

Nos tempos da Redenção, que ele aguardava com terror, ousou atacar a própria santidade, que, por permissão do Altíssimo, não sabia ser o Filho de Deus. Não podia conhecer Maria, a toda-santa, que era imaculada. Teria invadido São Pedro, se a graça do divino Mestre não o tivesse preservado. Arrastou Judas, a quem seus vícios tornavam acessível; e, um pouco mais tarde, apoderou-se de Simão, o primeiro dos hereges e daqueles que seguiriam seus passos.

Deus, contudo, havia dado ao homem uma alma capaz de grandeza, e, no meio da multidão envenenada, erguiam-se inteligências que as tradições adulteradas não satisfaziam; mas, separadas de Deus, não podiam reencontrar seus caminhos. Essas inteligências, fortes o bastante para compreender o absurdo das idolatrias, não o eram suficientemente para repelir o orgulho, implantado por Satanás nas almas. Podiam reconhecer, como Robespierre, uma potência suprema; presas aos seus vínculos corporais, não podiam, como os anjos rebeldes, sonhar em fazer-se deuses; mas faziam deuses à sua própria semelhança, com suas paixões. Desse modelo, chegou-se rapidamente ao culto do homem.

As filosofias nasceram em meio a esse caos, ou, para falar com mais exatidão, os filósofos; pois, excetuando Platão e alguns outros em pequeno número, os filósofos tiveram poucos discípulos. A graça, como tudo o que é perfeito, só pode vir de Deus. Sua luz só pôde ser concedida a Platão em retribuição a algumas virtudes. Ele chegou a compreender a necessidade de um Deus único e criador e, de consequência em consequência, a deduzir, do estado de imperfeição e miséria em que se encontrava o homem criado por Deus, as consequências de uma grande queda e a necessidade de uma reparação sobre-humana.

Mas, além dessa exceção, que tinha suas obscuridades, todas as outras filosofias conduziram primeiro a resultados nulos e depois perigosos. Quis-se explicar tudo sem mistérios e, afastando-se dos mistérios divinos, chegou-se fatalmente a outros.

O sr. Adolphe Dechamps, em uma publicação que fez algum bem (1), publicou sob o título Como terminam as épocas filosóficas um quadro curioso do que sempre segue as filosofias separadas da revelação; o que contribui para demonstrar que a filosofia não é de modo algum irmã da teologia, mas sua serva, e a Agar rebelde de Sara.

O sr. Dechamps expõe como a filosofia oriental se extinguiu na teurgia, e como o mesmo destino matou a escola alexandrina. Esses filósofos, que se diziam discípulos de Platão e que queriam suplantar o Evangelho, caíram na mística diabólica. Plotino vangloriava-se de ter, como Sócrates, um demônio familiar; Jâmblico evocava os espíritos; Juliano, o Apóstata, sacrificava aos demônios. Como os sábios do Oriente, detiveram-se no universo-Deus ou no panteísmo, e consultavam o futuro, como se vê em Tertuliano, por meio de mesas girantes.

Esses mesmos fenômenos se reproduziram no século da Reforma, no iluminismo; e em nossos dias a filosofia, que o sr. Cousin proclamava vitoriosa, trouxe-nos o sonambulismo, o saint-simonismo e os espíritos batedores.

Trevas para os filósofos, luz para aqueles cristãos que, antes de tudo, escutam a Igreja e guardam a fé.

Como era difícil classificar metodicamente essas lendas e ligá-las por considerações que pudessem aborrecer o leitor, privamo-nos de transições e fomos sóbrios nas reflexões que esses relatos singulares faziam nascer.

Ver-se-á, portanto, às vezes o diabo impotente e ridicularizado após o diabo triunfante, e a lenda séria preceder ou seguir a lenda que se aproxima do conto. Pois nem tudo é verdadeiro nesta galeria; e, no entanto, há nela muito mais verdade do que a maioria dos leitores acreditará.

(1) Revue de Bruxelles, edição de julho de 1837.

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II. — SIMÃO, O MAGO.

Que o teu dinheiro pereça contigo, pois julgaste que o dom de Deus pudesse ser adquirido por dinheiro.
Atos, cap. VIII, v. 20.

“Havia em Samaria um homem chamado Simão, que praticava a magia e havia seduzido o povo, de tal modo que todos lhe davam ouvidos e o chamavam de a Grande Virtude de Deus… Eles o escutavam porque ele lhes havia transtornado o espírito com seus encantamentos (1).”

O diácono Filipe, tendo vindo pregar o Evangelho em Samaria, Simão, admirado com os milagres que ele realizava, pediu também e recebeu o batismo. Desde então, não se afastava mais de Filipe.

Ora, os santos apóstolos Pedro e João, tendo vindo a Samaria, oraram por aqueles que Filipe havia batizado, para que recebessem o Espírito Santo. Simão, vendo que os fiéis sobre os quais o Espírito Santo derramava seus dons pela imposição das mãos dos apóstolos falavam várias línguas sem tê-las aprendido e realizavam prodígios, ofereceu dinheiro a São Pedro, dizendo-lhe: “Dai-me também esse poder, para que aqueles sobre os quais eu impuser as mãos recebam o Espírito Santo.”

Mas Pedro lhe respondeu: “Que o teu dinheiro pereça contigo, pois acreditaste poder adquirir com dinheiro o dom de Deus (2).” Em seguida, exortou-o a fazer penitência.

Mas Simão, repelido, lançou-se ainda mais do que antes na magia; e, se não se declarou logo em guerra aberta contra os apóstolos, foi porque temia seu poder. Depois da partida deles, ergueu novamente a cabeça; espalhou suas doutrinas em Samaria e em outras cidades, apoiando suas palavras em prodígios que lhe granjearam prosélitos. Chegou ao ponto de se apresentar como a Trindade divina, que teria aparecido entre os judeus como o Filho, entre as diversas nações como o Espírito Santo, e entre os samaritanos como o Pai.

Era acompanhado de uma escrava que havia comprado em Tiro; chamava-se Selene ou Helena. Ele dizia que ela era aquela célebre Helena da guerra de Troia; que ele mesmo a havia concebido de sua própria essência espiritual; que ela era a mãe de todas as coisas; que com ela havia criado os anjos e os arcanjos; que estes, depois, haviam criado o mundo visível; e que, querendo fazer crer que tinham se produzido por si mesmos, pois não o conheciam, a ele, Simão, que era seu pai, haviam se apoderado de sua mãe e, para impedi-la de retornar aos céus, a encerraram em um corpo; que desde então ela havia passado sucessivamente, como de uma embarcação a outra, para o corpo de diversas mulheres; que ele enfim a havia reencontrado, resgatado, e que vinha com ela salvar os homens. Acrescentava que não se devia crer nas profecias, pois haviam sido inspiradas apenas pelos anjos.

Os homens, sendo livres, dizia ele, podem fazer tudo o que quiserem; pois são salvos por sua graça e não por suas obras, que são indiferentes. O que se chama bem não passa de uma ideia insinuada pelos anjos para escravizar este mundo; por isso eu o destruirei, este mundo, e libertarei os meus. A própria idolatria não passa de uma forma, e podeis adorar-me sob o nome de Júpiter ou sob qualquer outro, assim como tendes o direito de adorar Selene sob o nome de Minerva. Os nomes não passam de vento.

Depois de espalhar suas doutrinas no Oriente, onde favoreciam as devassidões, onde seus sacerdotes vendiam filtros, explicavam os sonhos, faziam encantamentos e adivinhavam todos os segredos, ele foi a Cesareia, onde queria, agora que se via amparado, disputar com São Pedro. Encontram-se os detalhes dessa disputa na história apostólica de Abdias, nas Reconhecimentos atribuídos a São Clemente e em outros escritos dos primeiros tempos.

O chefe dos apóstolos, que não recusava o debate, entrou na sala onde Simão, o Mago, havia convocado seus partidários, e suas primeiras palavras foram:
— A paz esteja com todos vós, que estais prontos a estender a mão à verdade.
— Não precisamos da tua paz, respondeu Simão. Onde há paz e concórdia, não se faz esforço algum para conhecer a verdade. Por isso não te convido à paz, mas à controvérsia; e só poderá haver paz entre nós quando um de nós tiver derrubado o outro.
— Por que temes ouvir o nome da paz? replicou São Pedro. Não sabes que a paz cumpre a lei? A guerra e as disputas procedem do pecado. Onde não há pecado, reina a paz nos diálogos, e a verdade brilha nas obras.
— Tuas palavras não têm peso algum, disse Simão, e devo demonstrar-te o meu poder, para que caias por terra, reconheças minha divindade e me dirijas tuas preces. Eu sou a primeira dominação; eu sou desde sempre, sem princípio e sem fim. Entrei no seio de Raquel (que era sua mãe); saí dele querendo nascer e aparecer como homem, para ser visto pelos homens. Fiz para mim um corpo. Voei pelos ares e pelo fogo. Transformei pedras em pão; lancei-me do alto de uma montanha e, levado pelos anjos, desci à terra. Posso desaparecer aos olhos dos que me veem e aparecer subitamente em todos os lugares; atravesso montanhas e rochedos, que se amolecem e se abrem diante de mim. Preso, quebro minhas correntes e coloco grilhões naqueles que acreditavam me manter cativo. Encarcerado, ordeno às portas, e elas se abrem por si mesmas. Animo estátuas, de modo que os que as veem as tomam por homens vivos. Ressuscitei mortos. Faço surgir da terra árvores desconhecidas e produzo plantas novas. Lanço-me ao fogo sem que ele me cause dano. Mudo à vontade os traços do meu rosto, de modo que não se pode reconhecer-me. Posso mostrar-me aos homens com dois rostos e assumir as formas de um carneiro, de um bode, de uma criança ou de um velho de longa barba. Descubro tesouros, faço reis e faço-me adorar. É preciso dizer mais? Tudo o que quero se realiza. Um dia, minha mãe Raquel mandou-me ceifar um campo. Fui até lá e, vendo uma foice no chão, ordenei-lhe que ceifasse; ela obedeceu imediatamente e fez o trabalho de dez ceifeiros.
— Tu não demonstras aqui outra coisa, respondeu então Pedro, senão que és um encantador, enquanto nosso divino Mestre mostrou sobretudo sua bondade. Mas se não queres admitir que não passas de um encantador, vamos à tua casa, com esta multidão que nos cerca, e ali o que tu és se revelará à plena luz.

Diante dessa proposta, Simão, como única resposta, lançou-se sobre São Pedro, injuriando-o e ameaçando-o. Depois, aproveitando o tumulto que se levantou imediatamente, escapou e desapareceu. O povo, irritado, correu em sua perseguição e expulsou-o da cidade, enquanto Pedro dizia aos fiéis que haviam ficado junto dele:
— Deveis, meus irmãos, suportar os maus com paciência, sabendo bem que o Senhor, que poderia aniquilá-los, tolera ele mesmo que permaneçam até o dia que marcou. Vós, portanto, que vos converteis ao Senhor pela penitência, dobrai o joelho diante dele.
E então ofereceu o sacrifício.

Ao deixar Cesareia, Simão foi seguido apenas por um de seus prosélitos, a quem anunciava que se dirigia a Roma, querendo antecipar-se ali ao chefe dos apóstolos. Sabia que Pedro se dispunha a voltar para lá em breve. Esse único discípulo do encantador o abandonou pouco depois e, no dia seguinte, veio confessar a São Pedro seus desvios e submeter-se à penitência.

O apóstolo Pedro voltou de fato a Roma, onde, unido a São Paulo, difundia a fé do Senhor Jesus em todos os corações; e o Evangelho fazia, na capital do mundo, grandes progressos. Mas Simão, por seus prestígios, havia conquistado de tal modo o coração de Nero, que não teve dificuldade em irritá-lo contra os cristãos. Contudo, a sábia doutrina dos apóstolos e seus milagres ganhavam todos os dias fiéis para a Igreja; e Nero hesitava em perseguir homens que as pessoas de bem veneravam. Simão redobrou seus esforços. Diante de Nero, mudava subitamente de aparência, tendo ora o rosto de um adolescente, ora o de um velho. Por meio de seus encantamentos, disse a Nero:
— Para vos convencer, grande imperador, do meu poder como Deus e como Filho de Deus, mandai cortar-me a cabeça; ressuscitarei ao terceiro dia.
Nero deu imediatamente essa ordem. Mas, seja porque o charlatão tenha substituído, como dizem uns, um carneiro em seu lugar, seja porque tenha colocado uma cabeça de carneiro sobre a sua, como relatam outros, ou por qualquer outra fascinação, ele não deixou no lugar onde o carrasco o decapitou senão uma poça de sangue, e desapareceu.

Depois de esconder-se por três dias, voltou a procurar Nero e lhe disse: Mandai limpar o sangue que foi derramado, e vede que ressuscitei ao terceiro dia, como vos anunciei.
Os legendários contam que um demônio tomava frequentemente a figura de Simão e discursava em seu favor diante do povo romano. Seus adeptos o veneravam tanto que lhe ergueram uma estátua.

Pedro e Paulo julgaram então dever esclarecer o imperador sobre os sortilégios de Simão:
— Assim como há em Jesus Cristo duas naturezas, a de Deus e a do homem, disse Pedro, há também em Simão duas naturezas: a do homem e a do demônio.
Simão, que estava presente, exclamou, segundo o relato do santo papa Leão:
— Não suportarei por mais tempo os ultrajes desse homem, e vou ordenar aos meus anjos que me vinguem.
— Não posso temer teus anjos, replicou São Pedro, pois eles mesmos têm medo de mim.

Houve nessas lutas muitos encantamentos vãos que não fizeram Simão triunfar.

Mas não devemos omitir uma curiosa anedota relatada por Cedreno, Nicéforo e outros, com algumas variantes:
Durante sua permanência em Roma, Simão havia prendido à sua porta, por meio de uma grande corrente, um cão enorme encarregado de afastar aqueles que vinham até ele e que não queria receber. Diz-se que esse animal, tão temível por sua força quanto por sua ferocidade, havia estrangulado várias pessoas a quem Simão recusava a entrada. São Pedro, indo encontrar Simão em sua casa, dirigiu-se diretamente ao cão, soltou-o e ordenou-lhe que fosse dizer ao seu senhor, falando com voz humana, que Pedro, servo de Jesus Cristo, desejava falar com ele. Pois o santo apóstolo não julgava dever ainda abandonar essa alma tão profundamente corrompida.

O cão fez o que o apóstolo lhe havia ordenado; e como aqueles que cercavam Simão demonstravam tanto admiração quanto espanto diante desse prodígio, ele lhes disse: “Acreditais que eu não tenha o mesmo poder?” Em seguida, dirigindo-se ao cão, ordenou-lhe que fosse anunciar a Pedro que podia entrar.
Esse cão só podia ser um demônio; e em outra ocasião, quando Simão lançou contra o santo apóstolo aqueles que chamava seus anjos e que não eram senão demônios, Pedro não viu vir em sua direção senão uma matilha de cães.

Outra ocasião veio demonstrar a impotência de Simão para o bem. Um jovem parente do imperador morreu, para grande luto de sua família. Como Simão se gabava de ressuscitar mortos, mandaram chamá-lo; e Nero, aparentando desejar esclarecer-se, ordenou que se chamasse também o apóstolo Pedro. Os partidários de Simão declararam que, se ele ressuscitasse o morto, São Pedro seria condenado a perder a cabeça; mas que, se ele falhasse e o apóstolo de Jesus Cristo realizasse o milagre, Simão, por sua vez, sofreria o tratamento que ele próprio havia ditado para seu adversário.

Simão, dissimulando sua inquietação, aproximou-se do morto, murmurou encantamentos, cantou em voz baixa palavras obscuras. Logo, os que cercavam o mago exclamaram que o morto mexia a cabeça, que vivia, que falava com Simão. Zombou-se de São Pedro, que havia duvidado do poder de Simão.

Mas como o morto não fazia movimento algum, a calma voltou, e o apóstolo disse suavemente:
— Se o morto retomou a vida, pode falar; se está reanimado, pode levantar-se. Parece-vos que a cabeça se agita: afastai o encantador, e reconhecereis que isso é um prestígio.
Seguido esse conselho, examinou-se o morto, em quem a vida estava totalmente extinta. Então Pedro, após ter rezado um instante, sem se aproximar do leito, disse em alta voz:
— Jovem, em nome de Jesus Cristo, levanta-te, eu te ordeno.
O morto levantou-se imediatamente, falou e andou; e o apóstolo o entregou à sua mãe.

Esse milagre consternou os partidários de Simão. Mas o encantador, temendo para si as consequências de sua derrota e acreditando que os demônios o ajudariam melhor em um prodígio que não perturbasse, como a ressurreição de um morto, os desígnios de Deus, anunciou imediatamente que deixaria Roma, onde só encontrava ingratidão, e que sua onipotência seria reconhecida, pois só partiria voando aos céus, à vista de todos. Indicou um dia muito próximo.

Chegado esse dia, todo o povo de Roma reuniu-se em torno do Capitólio e nas praças. Simão havia fabricado asas, com as quais se elevou um pouco do alto de uma torre. São Pedro e São Paulo rezavam juntos:
— Senhor Jesus, diziam eles, mostrai o vosso poder; não permitais que este povo, que deve crer em vós, seja enganado por tais malefícios. Que ele caia, Senhor, mas que não perca a vida, e que tenha tempo de reconhecer que nada pode contra vós.
Em seguida, São Pedro disse em alta voz estas palavras:
— Demônios que o sustentais, eu vos ordeno, em nome de Jesus Cristo, que o abandoneis.
Imediatamente, abandonado pelas potências das trevas que o sustentavam, Simão caiu e quebrou as pernas.

Abdias diz que ele morreu poucas horas depois. Mas nos Philosophumena, publicados recentemente pelo sr. Miller, afirma-se que ele aproveitou a força que ainda lhe restava para fazer-se enterrar antes de morrer, anunciando que ressuscitaria como Jesus Cristo. O que não aconteceu.

O que pode parecer surpreendente é que Nero o lamentou; e os romanos colocaram sua estátua na ilha do Tibre com esta inscrição: Simoni Deo Sancto, pois, apesar de seus fracassos, ele tinha muitos partidários, por causa de sua moral cômoda (1); e assim foi ele o primeiro dos heresiarcas.

(1) Contestou-se a existência da estátua erguida a Simão. Mas Apolônio de Tiana, que era como ele um impostor fazendo-se passar por deus, teve de fato estátuas e templos. Contestou-se também o voo de Simão pelos ares; mas ele é relatado como real e fisicamente verdadeiro por Justino e por vários Padres da Igreja. Dión Crisóstomo, autor pagão, relata que Nero manteve por bastante tempo em sua corte um mago que lhe prometera voar pelos ares. Suetônio diz, na Vida de Nero, que um homem empreendeu voar diante da multidão, elevou-se e depois caiu, e que o balcão onde estava o imperador foi manchado com seu sangue. Todos os críticos sérios admitem esse fato incontestável.

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III. — APOLÔNIO DE TIANA.

Levantar-se-á um grande número de falsos profetas que seduzirão muitas pessoas.
SÃO MATEUS, cap. XXIV, v. 2.

Simão teve em Roma um sucessor mais modesto, um filósofo chamado Apolônio. Nascido em Tiana, na Capadócia, é desconhecido em seus primeiros anos; já adulto, adota a filosofia de Pitágoras, alimenta-se apenas de legumes, percorre o mundo para instruir-se junto aos sábios e chega a Roma no tempo de Nero. Pitagórico acima de tudo, anda com gravidade, fala pouco e apenas por sentenças. Honra os oráculos com sua aprovação, e os oráculos o elogiam. Levanta-se contra os abusos, prega a reforma dos costumes, condena a moleza. Discípulos se aproximam dele. Mas fazem-no compreender que só será poderoso se também realizar milagres. Preparam-lhe um dos maiores; e, passeando por Roma, ele encontra o cortejo fúnebre de uma jovem que se dizia morta. Aproxima-se da liteira em que ela era levada, diz em voz baixa algumas palavras; a jovem desperta imediatamente, fala à multidão e retorna à casa do pai.

Huet e outros sábios sérios demoliram facilmente o frágil edifício dessa farsa. Mas, tendo Simão sofrido fracassos, queria-se opor algumas outras maravilhas aos prodígios que acompanhavam os apóstolos.

Certo dia, quando houve um eclipse do sol acompanhado de trovões, Apolônio disse aos que o rodeavam: “Algo de grande acontecerá e não acontecerá.”

Era uma daquelas profecias de almanaque que sempre encontram explicação. Alguns dias depois, um raio caiu sobre a mesa de Nero e derrubou sua taça. Imediatamente os discípulos de Apolônio exclamaram: “Foi isso que o profeta predisse.”

Apesar do ridículo desse comentário, Nero deu atenção ao filósofo; e, mais tarde, Vespasiano o consultava com reverência. Mas Domiciano, ao chegar ao poder, condenou-o à morte por suas intrigas em favor de Nerva, seu rival. O filósofo desapareceu, levado — diziam seus sectários — por um demônio que o transportou a Pozzuoli, onde se embarcou. Diz-se que morreu no ano seguinte, 97 da era cristã.

Eis toda a história desse homem, a quem seus partidários ergueram estátuas e prestaram honras divinas. Mas essa apoteose durou pouco tempo; e, mais de um século depois, quando ele já estava completamente esquecido por toda parte, viu-se chegar a Roma, sob Septímio Severo, um sofista grego chamado Filóstrato. Inimigo dos cristãos, foi cortejar a imperatriz Júlia, que os detestava e era esposa de Severo, ardente perseguidor.

Júlia era o que hoje se chamaria uma intelectual excessiva; em nossos dias teria feito gemer as imprensas. Tendo obtido um relato das viagens de Apolônio, escrito por um certo Dâmis de Nínive, que o havia acompanhado em sua vida errante, e reunido vários contos populares sobre esse profeta, ela encontrou em Filóstrato, que falava com elegância, o homem que procurava para construir, com esses materiais, uma história que pretendia opor à de Jesus Cristo. Filóstrato encarregou-se da tarefa e produziu um relato cujo resumo segue.

Observemos primeiro o grau de confiança que merece Dâmis, que assegura ter visto, ao atravessar o Cáucaso, as correntes de Prometeu ainda presas à rocha. Mas Filóstrato era homem capaz de admitir tudo.

Segundo ele, a mãe de Apolônio foi avisada de sua gravidez por um demônio. Os pagãos davam esse nome a todo espírito, bom ou mau. Um príncipe dos espíritos teria sido seu pai. Cisnes cantaram ao redor de seu berço, e sua vida foi uma sucessão de milagres. Ressuscitava mortos, libertava possessos, dava oráculos, conversava com fantasmas, viajava pelos ares levado por espíritos e mostrava-se na mesma hora em vários lugares do mundo. Compreendia a língua dos pássaros.

O historiador desse homem excêntrico conta que, tendo ido ao túmulo de Aquiles, evocou seus manes; que imediatamente houve um grande terremoto ao redor do túmulo e dele saiu um jovem de sete pés e meio de altura, de beleza singular. O espectro, acrescenta ele, elevou-se até dezoito pés e falou de modo tão grosseiro que Apolônio reconheceu que estava possuído por um demônio. Ele expulsou o demônio, após o que teve com Aquiles uma conversação ordenada.

Quando, procurado por Domiciano, fugiu de Roma, foi a Éfeso, onde grassava a peste. Os habitantes, junto aos quais sua reputação o precedera, mal souberam de sua chegada e já foram pedir-lhe que os livrasse do flagelo. Apolônio ordenou-lhes que sacrificassem aos deuses. Feito o sacrifício, exclamou que via o diabo ou o demônio da peste; apontou-o na pessoa de um mendigo miseravelmente vestido e ordenou à multidão que o apedrejasse até a morte, o que foi feito prontamente. Quando se retiraram as pedras, não se encontrou no lugar do pobre homem lapidado senão a carcaça de um cão negro, que foi lançada ao lixo; e a peste cessou.

Foi então, sem dúvida, que outro encantador, chamado Iespesíon, admirador de Apolônio, ordenou a um olmo que saudasse o homem divino, o que a árvore fez, mas com uma voz fraca que indicava que o olmo envelhecia.

Conta-se também que, dois anos depois, no momento em que Domiciano foi assassinado, Apolônio, no meio de uma multidão diante da qual discursava, deteve-se de repente e exclamou: “Fere e mata o tirano!” Após um silêncio bastante curto, retomou: “O tirano está morto.” Era, dizem, a hora em que o liberto Estêvão matava Domiciano.

Se esse fato não for uma fábula, provaria as relações evidentes do homem divino com os demônios.

Atribuem-lhe talismãs e outros preservativos mágicos, dos quais os homens que caminham com Deus não têm necessidade; mas, repetimos, sua história não passa de um romance calculado. Todos os prodígios que nela se encontram são combinados de modo a poderem comparar-se aos fatos divinos da mais augusta das histórias, com a diferença de que os de Apolônio não mereciam sequer o sucesso efêmero que tiveram.

Um raio cai do céu no nascimento de Apolônio: é uma oposição à estrela que parou sobre Belém; as cartas de felicitação que vários reis escreveram à mãe de Apolônio correspondem à adoração dos Magos; os discursos que ele profere muito jovem no templo de Esculápio são uma cópia impudente da sessão do Menino Jesus entre os doutores; o espectro que lhe aparece ao atravessar o Cáucaso é um reflexo grosseiro da tentação no deserto. Esses paralelos mostram que Filóstrato foi, no mínimo, desajeitado. “O caso que se deve fazer desses contos não é atribuí-los à magia”, diz Naudé, “mas negá-los totalmente.”

Hierocles quis, sob Diocleciano, reavivar esse paralelo; foi refutado frontalmente por Eusébio, que não vê em Apolônio senão um mago. Lactâncio compara o relato de Filóstrato ao Asno de Ouro de Apuleio, e a comparação é justa. Fócio, ao elogiar o estilo do sofista, considera seu livro um tecido de extravagâncias desprezíveis. Todos os críticos modernos julgaram do mesmo modo.

Amiano Marcelino coloca Apolônio entre os homens assistidos por um demônio familiar, “como Sócrates e Numa”.

Pouco se sabe sobre o fim de Apolônio. Alguns afirmam que, quase centenário, foi levado pelo diabo, embora Hierocles sustente que foi arrebatado ao céu. O fato é que desapareceu sem ruído.

Vopisco relata que, cerca de oitenta anos após sua morte, seu espectro apareceu a Aureliano, que cercava Tiana, e o impediu de destruir a cidade. Mas houve escritores que pretenderam que ele não tinha morrido e que foi visto no século XII, tendo prolongado sua vida até então pelo segredo dos alquimistas ou pela pedra filosofal; teria mudado de nome e então se chamado Artefius.


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DA ERA ANTIGA

HIPÓCRATES

Depois de terem feito do príncipe da poesia um feiticeiro em comércio com o diabo, não se podia fazer menos com o pai da medicina. Dizia-se, na Idade Média, que o médico devia ter um pouco de magia. Conta-se, portanto, que, no tempo em que César Augusto era imperador de Roma, seu sobrinho Gatus, a quem amava acima de tudo, de quem pouco sabemos e que devia herdar o império, adoeceu de modo tão grave que os médicos não puderam curá-lo. Havia três dias e três noites que ele não falava mais; toda a corte estava em grande tristeza, quando, por felicidade, Hipócrates entrou em Roma (1) e ficou muito surpreso ao encontrá-la de luto.

Por mais que interrogasse os transeuntes, ninguém lhe respondia. Subiu então ao palácio do imperador para saber a causa daquela dor pública. Só viu consternação por toda parte; e, abrindo caminho até o quarto onde o doente jazia, compreendeu então o motivo da desolação geral. Pôs a mão sobre o coração de Gatus e disse a César Augusto:

— Que favor me concedereis, se eu devolver a vida a este jovem?

O imperador prometeu tudo; e o sábio médico, tirando de sua bolsa uma erva e uma bebida, preparou uma poção que fez o doente engolir, abrindo-lhe suavemente os lábios. O jovem abriu imediatamente os olhos, pronunciou algumas palavras que encheram de esperança os presentes e, em menos de trinta dias, Hipócrates o restituiu à plena saúde.

Augusto cumulou de bens o hábil doutor e mandou erguer duas colunas, sobre as quais colocou, de um lado, a estátua de Hipócrates e, do outro, a de Gatus. Admitiu o sábio à sua mesa e lhe deu lugar em suas afeições.

Pouco tempo depois, habitantes do país de Gales vieram estabelecer-se em Roma. Havia entre eles uma dama de grande beleza. Um dia, olhando da janela do palácio a estátua de Hipócrates, enquanto lhe elogiavam o filósofo, ela disse:

— Por mais filósofo que seja, aposto que em um dia o farei passar pelo maior louco do mundo.

O sábio médico, tendo sabido dessas palavras, quis conhecer a bela galesa. Ao vê-la, apaixonou-se de tal modo que caiu doente. O imperador, inquieto, enviou toda a corte para visitá-lo; a galesa foi também, recebeu as confissões do filósofo, fingiu ser sensível a elas, e Hipócrates recuperou a saúde.

Mas a bela dama, que ele acreditava que iria desposar, era maliciosa. Como Hipócrates a pressionasse, ela lhe disse:

— Vinde esta noite sob a minha janela; descer-se-á um cesto preso a uma corda; subir-vos-ão à torre, onde minha família vos fará conhecer suas condições.

Era uma cópia da farsa feita a Virgílio.

O sábio foi pontual: em plena noite colocou-se no cesto, que a galesa mandou erguer quase até o topo da torre, muito acima das janelas; depois, prendendo a corda a um gancho, deixou o infeliz Hipócrates suspenso no meio do ar.

Ora, esse cesto era, em Roma, uma espécie de pelourinho onde se expunham os malfeitores. Quando amanheceu e viram ali Hipócrates, todos procuraram saber qual podia ter sido o seu crime. O imperador estava à caça e só voltou à noite; assim, o cesto só foi baixado ao cair da noite.

O sábio não quis revelar o autor de seu triste acidente; mas, para vingar-se, tornou a galesa, por meio de um encanto, apaixonada por um velho anão corcunda e disforme, com o qual causou grande espanto vê-la casar-se.

Algum tempo depois, um cavaleiro veio a Roma anunciar a César Augusto que um homem de Nazaré, chamado Jesus, curava todos os doentes, ressuscitava os mortos e fazia outras maravilhas. Hipócrates deixou imediatamente Roma, dizendo que iria procurar Jesus e aprender dele o que ainda não sabia.

Caminhando, curando por toda parte os doentes, mas não ressuscitando os mortos, chegou à casa de Antônio, rei da Pérsia, cujo filho restituiu à saúde. Antônio, como recompensa, fez-lhe desposar a filha do rei da Síria.

Para receber dignamente a bela princesa, o filósofo, que era mago, como se verá, mandou construir um palácio magnífico, onde reluziam o ouro, a prata e as pedras preciosas; sua arte, aliás, o tornara poderosamente rico. Construiu também um leito que curava todas as doenças daqueles que nele fazia deitar-se.

Entretanto, a princesa não o amava, por não ser ele de raça real. Hipócrates percebeu isso e fez para si uma taça de ouro, à qual fixou pedras preciosas que neutralizavam o efeito dos venenos. Muitas vezes a mulher perversa tentou envenená-lo, mas inutilmente: o encanto da taça era superior à força dos venenos. Irritada com esse obstáculo, a princesa roubou a taça e lançou-a ao mar.

Hipócrates deu-se conta, então, de seus maus desígnios; refez rapidamente outra taça, menos bela, mas dotada da mesma virtude. Entretanto, esquecia-se de ir procurar Jesus de Nazaré e, por suas paixões, como tantos outros, perdia-se.

Nessas circunstâncias, o rei Antônio realizou uma grande assembleia de corte, à qual Hipócrates se apressou a comparecer com a princesa, sua esposa. Certa noite, após a ceia, o rei, o filósofo e a mulher perversa estavam à janela que dava para o pátio do castelo. Viram ali uma jovem porca que comia um grande verme. Hipócrates exclamou:

— Quem comer a cabeça desse animal morrerá imediatamente. Nenhum remédio poderá salvá-lo.

— Nenhum remédio? — perguntou a princesa.

— Nenhum remédio — repetiu o filósofo —, exceto se beber a água na qual essa cabeça tiver sido cozida.

— Isso é muito estranho — acrescentou a mulher; e depois pareceu ocupar-se de outro assunto.

Assim que ficou livre, foi procurar o cozinheiro do palácio e ordenou-lhe que servisse a Hipócrates a cabeça dessa porca que ela indicou, recomendando-lhe que lançasse fora a água usada para cozinhá-la. O cozinheiro executou pontualmente as ordens recebidas; e mal o filósofo havia comido uma parte da cabeça da porca quando, percebendo a traição da esposa, exclamou:

— Ai de mim! Estou morto.

Apres­sou-se em ir às cozinhas pedir a água na qual fora cozida a cabeça do animal venenoso; indicaram-lhe o esterco sobre o qual essa água havia sido jogada. Deitou-se ali, mas inutilmente: o veneno era mais forte e o consumia pouco a pouco.

A princesa que o havia traído não pôde gozar de sua morte, pois, apesar das súplicas do marido, que a perdoava e pedia graça para ela, o rei Antônio mandou expô-la sobre um rochedo da praia. Ali permaneceu três dias e ali morreu.

Hipócrates procurava, à força de cuidados, prolongar sua existência; mas a vida o abandonava de hora em hora. Mandou cavar sua tumba sob um rochedo; e, antes de morrer, fez algo que espantou muito os que o viram: tomou um cesto de junco e o encheu de ervas; depois despejou sobre ele muita água, que fez sair por um único jato, sem deixar escapar uma gota por outro lado. Dir-se-ia que ela escorria de um barril bem fechado. Perguntaram-lhe por que agia assim.

— Faço isso — disse ele — para vos mostrar quão grande coisa é a morte de um homem, quando ela está decidida. Nenhuma medicina pode impedi-la; pois, se eu devesse curar-me, poderia deter a disenteria que me consome, assim como retirei deste cesto a água que nele se encontrava.

Depois de assim falar, o filho de Esculápio não tardou a morrer; expirou no décimo quinto dia de setembro, pouco antes da morte de Nosso Senhor.

Tomamos esta notícia sobre Hipócrates de um extrato mais extenso, publicado pelo senhor Leroux de Lincy, a quem se devem tantos estudos eruditos sobre a Idade Média. Esse sábio acrescenta um fragmento do romance dos Sete Sábios de Roma, no qual Hipócrates desempenha ainda um papel pouco glorioso:

Hipócrates, diz uma das histórias desse livro, foi o médico mais sábio da terra. De toda a sua família, restara-lhe apenas um sobrinho, a quem ele teve o cuidado de não revelar a ciência que possuía. Apesar disso, o jovem estudou em silêncio e tornou-se tão hábil quanto o tio, que, reconhecendo seu talento, não pareceu de modo algum contrariado. Sucedeu que o filho do rei da Hungria caiu doente. Hipócrates foi imediatamente chamado; mas assuntos importantes o impediam de empreender viagem tão longa. Respondeu ao rei que, não podendo obedecer a suas ordens, lhe enviaria um sobrinho. Este dirigiu-se à corte da Hungria.

O rei e a rainha apresentaram o príncipe doente ao jovem médico, que olhou a criança, olhou o pai, olhou a mãe, depois pediu para ver suas urinas; mostraram-nas. Após longa reflexão, o jovem médico disse:

— Dai a essa criança carne de boi.

Obedeceu-se à prescrição, e o filho do rei da Hungria sarou imediatamente. O jovem médico, ricamente recompensado pelo rei, voltou para junto do tio.

Hipócrates perguntou-lhe:

— Curaste a criança?

— Sim, senhor.

— O que lhe deste?

— Carne de boi.

— És muito sábio — disse Hipócrates; e, desde esse momento, concebeu em seu espírito pensamentos de morte e de traição contra o sobrinho.

Um dia chamou-o e levou-o consigo a um jardim.

— Vejo uma bela erva — disse o jovem; e apressou-se a colhê-la para apresentá-la ao tio.

— É verdade — replicou Hipócrates —, mas creio sentir outra ainda melhor.

O sobrinho ajoelhou-se para colhê-la; imediatamente Hipócrates tirou um punhal que havia escondido sob a roupa, aproximou-se do jovem, feriu-o e matou-o. Fez mais: voltando para casa, tomou todos os seus livros e os queimou, não querendo que alguém herdasse sua ciência.

Hipócrates, diz o mesmo livro, sentindo que em breve morreria, mandou trazer um tonel cheio de água pura, que fez perfurar em diversos lugares e depois vedar hermeticamente. Em seguida, tendo secado a água do tonel com um pó, chamou seus amigos:

— Eis um tonel — disse ele — que enchi de água clara; agora, abri-o.

Os amigos de Hipócrates retiraram as rolhas; mas a água não escorreu.

— Pude estancar toda a água deste tonel — prosseguiu o médico —, mas não posso deter aquela que corre do meu corpo: por isso vou morrer.

E não se enganava: não tardou a dar o último suspiro.

Legrand d’Aussy, em seus fabliaux, nos quais poupa tão pouco a delicadeza do leitor, também relatou a aventura do cesto de Hipócrates, que, aliás, como já observamos, é copiada da lenda de Virgílio.

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ARISTÓTELES

Nossos antepassados, em seus contos, tinham prazer, como se vê, em lançar o ridículo sobre os filósofos; e com isso mostraram conhecer tão bem quanto nós as fraquezas humanas.

Lê-se, portanto, no tomo I da coletânea bastante pouco decente de Legrand d’Aussy, que acabamos de citar, que um dia Aristóteles censurou seu aluno Alexandre pela paixão que concebera por uma jovem indiana e pelo esquecimento de seus deveres de rei a que essa paixão o conduzia. O príncipe, escutando as lições da sabedoria, passou então a cortejá-la com menos assiduidade. A indiana foi informada da repreensão do filósofo e resolveu vingar-se. Foi procurar Aristóteles; como ele só estava protegido por sua pobre filosofia e por uma ciência mágica que não valia mais, ela lhe fez alguns graciosos cumprimentos, que o perturbaram mais depressa do que esperava.

Quando lhe virou o espírito com um sorriso, pediu-lhe que não seria bondoso o bastante para lhe permitir satisfazer um desejo que tinha havia muito tempo e que exigia dele apenas um pouco de complacência. Aristóteles protestou que nada lhe poderia recusar.

— Pois bem — disse a princesa —, ousarei confessar-vos essa fantasia, da qual só posso curar-me com a vossa condescendência: é que morro de vontade de cavalgar sobre vossas costas.

O filósofo calvo e enrugado não teve forças para recusar um pedido tão absurdo. A astuta indiana mandara trazer uma sela, um freio e um chicote. Colocou a sela nas costas de Aristóteles, o freio em sua boca, montou sobre ele como sobre um pangaré e o fez caminhar de quatro diante de Alexandre…

Esse episódio singular é citado na Euryale de Eneias Silvius. Spranger, pintor do imperador Rodolfo II, o representou no começo do século XVII em um quadro que Sadeler gravou; ele também é mencionado nas notas de Miguel de Éfeso sobre Aristóteles (Veneza, 1527).

[Comentário nosso: Trata-se de uma fábula, verossímil, sobre Aristóteles e Filis, falando que nenhum homem, nem mesmo um Mestre da Lógica, da Moderação, sobretudo, do Auto-controle, como era visto Aristóteles {mesmo ele já ter sido casado duas vezes, uma com Pítias com quem teve uma filha chamada também de Pítias e depois com Hérpilis, com quem teve um filho chamado Nicômaco}, consegue se conter diante da Energia Sexual e do Poder de Sedução de uma Mulher bem nascida, bela e ultra-formosa. Nenhum homem, por mais desapegado das coisas do mundo que seja, resiste a um chamado de um bom sexo ou aos pedidos de uma 'potranca'. E nem precisa estar sob encanto de uma feiticeira, um espírito ou demônio para desabar na luxúria].  

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V. — UM DOS TRIBUNAIS DO INFERNO.

Os lobos não se devoram.

Provérbio antigo.

Havia, não longe de Toledo, numa caverna misteriosa e profunda, uma escola de necromancia e de magia, espécie de universidade oculta cuja existência o sr. de Balzac reconheceu. Depois de ter mantido seus cursos por mais de três séculos, ela foi fechada sob o reinado de Fernando V, o hábil rei que concluiu a libertação da Espanha.

No século XII, os maus sujeitos de todos os países vizinhos iam a essa escola, na esperança de aprender, em suas lições noturnas, o meio de obter riquezas e prazeres sem trabalho. Alguns normandos, que ali recebiam ensinamentos de seu agrado, tendo ouvido seus mestres contarem prodígios obtidos pelo poder mágico, pediram àquele que se dizia o mais poderoso que os fizesse testemunhas de alguma cena infernal. O professor quis conter um desejo tão precipitado em seus jovens adeptos e expôs-lhes os perigos. Mas, como eles persistiam no pedido e se mostravam bastante intrépidos, levou-os certo dia a uma clareira pouco frequentada, por causa de sua má reputação. Ali traçou no solo árido um grande círculo, que, segundo disse, era um recinto protetor. Fez os alunos entrarem nele e recomendou-lhes que, acontecesse o que acontecesse, permanecessem imóveis, se não quisessem ser levados por algum demônio. Advertiu-os ainda a não dar nada aos espíritos que viriam e a não aceitar coisa alguma deles.

Depois disso, afastou-se e realizou suas evocações, cujas fórmulas ainda não queria divulgar.

Poucos instantes depois, uma tropa de demônios saltou ao redor do círculo e o cercou, sem contudo entrar nele. Usavam traje militar e armas bem trabalhadas. Primeiro, para distrair os jovens normandos, fizeram alguns exercícios como os praticados por homens de guerra. Em seguida, recuando para ganhar impulso, lançaram-se contra os espectadores, lança em riste e espada em punho, na evidente intenção de aterrorizá-los e fazê-los sair do círculo. Mas, embora assustados, os aprendizes de necromantes se apertaram uns contra os outros, em vez de fugir; e logo se tranquilizaram ao notar que a ponta das armas inimigas não podia ultrapassar a linha traçada por seu mestre e que estavam em segurança dentro do círculo mágico.

Tendo fracassado em sua primeira tentativa, os demônios se afastaram para assumir outra forma; reapareceram pouco depois sob a aparência de jovens moças belas e bem vestidas. Nesse disfarce, fizeram uma espécie de entrada de balé, formando danças ruidosas e tentando, com provocações, atrair os jovens. Uma dessas falsas moças, percebendo um dos estudantes sobre quem a tentação começava a agir, avançou dançando com maravilhosa leveza e lhe apresentou um anel de grande valor. O jovem levantou a mão acima do círculo para pegar o anel; mas o demônio o puxou com agilidade, lançou-lhe os braços ao pescoço e o levou consigo. Toda a tropa disfarçada voou com ele.

Os outros jovens soltaram então gritos que fizeram seu mestre voltar. Contaram-lhe o que acabara de acontecer.

— Não sou o responsável — disse ele. — Vocês quiseram ver os demônios; eu lhes anunciei o perigo. O companheiro de vocês, que se expôs, não sairá das mãos deles.

Os normandos daquela época não eram fáceis. Depois de se consultarem, disseram ao mestre que, se ele tinha o poder de fazer vir os demônios, podia também chamá-los de volta; que queriam recuperar o companheiro; que não deixariam o mago enquanto ele não o devolvesse.

Cercaram-no e, exaltando-se, acrescentaram:

— Se não o devolver, estamos aqui sem testemunhas; vamos matá-lo.

Parece que o poder do necromante era bastante singular; pois, apesar desse poder, ele tremeu por sua vida no meio daqueles furiosos. Respondeu-lhes:

— Esperem ao menos alguns instantes; vou fazer o melhor possível para lhes trazer de volta o amigo, se ele ainda não estiver morto.

Imediatamente, por cerimônias longas, evocou o príncipe dos demônios, ou antes um de seus príncipes, pois, segundo os demonólogos, eles têm vários. Esse demônio, conde ou marquês do inferno, consentiu em aparecer.

O necromante expôs-lhe que sempre o havia servido bem e fielmente; que se encontrava ameaçado de morte pelos próprios servidores que lhe preparava; e pediu-lhe que devolvesse aos estudantes irritados o companheiro cuja perda queriam vingar. O demônio respondeu-lhe:

— Amanhã reunirei para isso um concílio, no qual tu assistirás, e tentaremos satisfazer-te.

Os companheiros, tranquilizados, aguardaram.

No dia seguinte, à mesma hora da meia-noite, o demônio-chefe reuniu os de sua jurisdição e perguntou quem havia raptado o estudante reclamado pelo professor de Toledo e por que lhe haviam feito tal afronta. O demônio implicado respondeu:

— Senhor, fui eu quem realizou esse rapto; e, ao levar o jovem, não cometi nem injustiça nem violência: ele desobedeceu ao seu mestre ao ultrapassar o círculo que garantia sua segurança.

Discutiu-se então a questão; e, como não chegavam a um acordo, o príncipe da assembleia disse a um demônio de destaque que se sentava perto dele:

— Olivier, tu sempre foste juiz; não fazes acepção de pessoas em matéria de justiça: pronuncia-te, pois, sobre esta causa que nos ocupa.

O demônio Olivier respondeu gravemente:

— Minha opinião seria devolver esse jovem ao velho mestre, que vedes aflito e que nos é devotado. Ele nos prestou serviços e ainda nos prestará outros.

A opinião do juiz foi adotada; e o velho professor das ciências infernais reuniu o imprudente a seus companheiros, que desde então se encheram de veneração por seu grande poder.

Mas, se esses companheiros continuaram seus estudos abomináveis, o que não nos é dito, o jovem normando, que acabara de ver o inferno e não queria voltar para lá, desertou da escola de Toledo e refugiou-se num mosteiro de Cister, onde viveu sem mais pensar nos demônios, a não ser para se guardar de suas armadilhas.

Lê-se, em coleções latinas abundantes na Alemanha, outra história em que as mesmas medidas de prudência são recomendadas àqueles que ousam tentar ver o diabo. Um cavaleiro alemão, chamado Henrique, já filósofo no século XII, afirmava que não existiam demônios. Contudo, além da Sagrada Escritura, que é precisa, havia então, como hoje, fatos que provavam evidentemente a existência e as astúcias dos maus anjos; e um dia ele começou a duvidar de sua incredulidade. Foi então procurar um grande clérigo, chamado Filipe, que passava por manter relações com o diabo, e pediu-lhe que lho fizesse ver.

— Os demônios são horríveis — respondeu-lhe o clérigo. — Não se aproximam sem perigo. Pense bem antes de se expor.

— Mas convosco — replicou o cavaleiro — posso esperar que não me toquem.

E insistiu tanto que Filipe, depois de tomar suas precauções, levou-o a um cruzamento, onde traçou um círculo e o fez entrar nele; depois afastou-se para evocar o demônio. A coisa se fez ao meio-dia, pois o necromante queria provar ao incrédulo que não recorria a ilusões.

Antes de deixá-lo, dissera-lhe:

— Lembre-se bem de que, se puser o pé fora deste círculo antes do meu retorno, corre o risco de ser estrangulado ou levado pelo diabo. Cuide também de não lhe dar nada, de não lhe prometer nada, de não assumir compromisso algum com ele, a menos que queira tornar-se seu servidor. De resto, não se assuste com nada; poderá ver coisas terríveis; mas o diabo não tem poder algum sobre você, se seguir exatamente o que lhe prescrevo.

Ficando sozinho no meio do círculo, o cavaleiro Henrique sentou-se no chão para não cair quando o medo viesse. Logo se viu cercado por torrentes e águas transbordantes que inundavam tudo ao redor, mas que paravam nas bordas do círculo mágico e se retiravam rapidamente. Depois disso, ouviu ao redor os grunhidos de um exército de porcos, os assobios de todos os ventos desencadeados, os estrondos do trovão e muitos ruídos prodigiosos ou estranhos, entre os quais via passar à sua volta fantasmas e espectros assustadores. Não se perturbou muito. Mas, enquanto observava avidamente tudo o que circulava em torno do círculo, viu sair de um bosque próximo um fantasma pavoroso, inteiramente negro, que avançava em direção ao círculo a passos de gigante.

Era mais alto que as maiores árvores. O cavaleiro compreendeu que era o diabo e fez o possível para se manter firme.

Assim que chegou diante do círculo, o demônio perguntou a quem o ocupava:

— O que queres de mim?

— Desejei ver-te — respondeu Henrique.

— E por que esse desejo?

— Porque muitas vezes me falaram de ti.

— E o que te disseram?

— Bastante mal.

— Os homens me julgam e me condenam sem me conhecer. Atribuem-me todo o mal que se faz. Pergunta a Filipe, que me conhece bem, se tem algo de que se queixar de mim. Vês que faço tudo o que pode agradá-lo.

— Onde estavas quando ele te chamou?

— Estava a algumas jornadas daqui; vim apressadamente e espero algo de ti, pois toda corrida merece pagamento.

— O que queres que eu te dê?

— Teu manto.

— Preciso dele.

— Tua cintura.

— Não posso dispensá-la.

— Uma de tuas ovelhas.

— Não quero diminuir meu rebanho.

— Então, o galo do teu galinheiro.

— E o que farias com ele?

— Seu canto me alegraria.

— Se eu to desse, como saberias tomá-lo?

— Fica tranquilo; apenas dá.

— Não posso te dar. Mas dize-me: de onde te vem a ciência universal que possuis?

— Lisonjeiam-me, e queres seduzir-me, o que seria curioso. Sei bastante bem o passado e, sobretudo, desse passado, o mal que se fez no mundo; digo o mal do teu ponto de vista, não do meu. Por exemplo, posso dizer-te o lugar, o ano e o dia em que te separaste daquele lá de cima para te aproximares um pouco de nós. Conheço tua vida.

O diabo expôs essa vida do cavaleiro Henrique de modo tão cru, que ele ficou todo envergonhado. Quando o fantasma o viu abatido, estendeu sua grande mão negra por cima do círculo, e o cavaleiro, imaginando que teria o pescoço torcido, rolou pelo chão chamando Filipe em altos gritos. Ele acorreu, conjurou o diabo a retirar-se; e o pobre Henrique voltou para casa, agora bem certo da existência dos demônios, e não pedindo mais a Deus senão que nunca mais os tornasse a ver.

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VI. — UM PACTO EM CESAREIA.

Resistite diabolo, et fugiet a vobis.

“Resisti ao diabo, e ele fugirá de vós.”

São Tiago

Um rico ancião de Cesareia, chamado Érard, tinha uma filha única, que queria fazer religiosa; mas as coisas tomaram outro rumo, como se verá.

Era sob o episcopado de São Basílio, o Grande; e a Legenda Dourada recolheu, de documentos anteriores, os fatos que nos transmite.

Essa jovem, de quem acabamos de falar, sendo ao mesmo tempo bela, rica e nobre, despertou a paixão de um criado de seu pai. Mas, compreendendo que não lha dariam por esposa e não ousando declarar suas intenções, dirigiu-se a um mágico muito afamado nos bairros baixos da cidade. Prometeu-lhe uma recompensa considerável se pudesse ajudá-lo a conquistar sua jovem senhora.

— Meu poder não é grande o bastante para tal empresa — respondeu o mágico —, mas posso encaminhá-lo a alguém que, se estiver disposto a prestar-lhe homenagem, saberá garantir-lhe pleno êxito.

— Estou pronto para tudo — respondeu o criado.

O mágico então escreveu uma carta, selou-a com seu selo, entregou-a ao doméstico e ordenou-lhe que fosse, no meio da noite, ao túmulo de algum pagão, que ali invocasse os demônios segurando a carta na mão, que a erguesse acima da cabeça e depois a lançasse aos ares.

O jovem ambicioso executou pontualmente todas essas instruções. Imediatamente, um dos príncipes do inferno apareceu, cercado por uma escolta de demônios. Ele apanhara a carta em pleno voo e a segurava na mão. Depois de lê-la atentamente, disse ao jovem:

— É preciso que creias em mim, se queres que eu te preste o serviço pedido.

— Creio em vós, senhor — respondeu o criado.

— Muito bem. Mas não se pode confiar em vós outros, cristãos. Quando precisais de nós, vindes procurar-nos, e assim que vossos desejos são satisfeitos, voltais ao vosso Cristo. Só te servirei se renegares Jesus Cristo.

— Eu o renego.

— Bom. Assina então este pacto, pelo qual renuncias ao teu batismo, rejeitas a religião cristã e te fazes meu servo.

O criado assinou com mão firme.

O diabo, tendo assim suas garantias, encarregou alguns de seus demônios, cuja habilidade conhecia, de irem imediatamente armar emboscadas ao redor da filha do velho Érard e inflamá-la de amor por seu criado. Isso foi feito com tal intensidade que, ao despertar pela manhã, a jovem, sem compreender o que de repente a agitava, correu a lançar-se aos joelhos do pai e declarou, entre soluços, que morreria se ele não lhe desse por esposo o servo que indicava.

— Tende piedade de vossa filha — acrescentou ela, ao notar a consternação do ancião —; consultai vosso coração e mostrai-me que sois meu bom pai concedendo-me o que vos peço. Se permanecerdes insensível à minha súplica, vereis que vou expirar, e Deus vos pedirá contas de minha morte.

— Infeliz que sou! — exclamou o velho. — Minha filha está certamente enfeitiçada. Quem pôde roubar-me meu tesouro? Quem apagou a doce luz de meus olhos? Quem sufocou minhas esperanças? Minha filha, eu queria consagrar-vos a Deus; esperava que, por vossas obras de penitência, ganharíeis o céu para vós e para mim; e eis que vos deixais arrastar por uma paixão insensata. Deixai-vos guiar por vosso pai; abjurai essa demência perniciosa; tende piedade de meus cabelos brancos e não mergulheis meus últimos dias na dor e na vergonha.

Mas a infeliz só respondia estas palavras:

— Meu pai, morrerei se me rejeitardes.

Depois de lutar por muito tempo contra o desvario da filha, vendo que ela não cessava de chorar com grande amargura de coração, o venerável Érard imolou-se e sacrificou-se. Deu à filha a maior parte de seus bens e permitiu que ela se unisse a um homem que se tornou seu genro contra toda expectativa humana.

Os dois jovens esposos então só pensaram no que chamavam de sua felicidade mútua, se é que a felicidade pode existir numa tal união. Mas logo se notou que o marido já não entrava na igreja, que não fazia mais o sinal da cruz. A esposa, cuja mente o espírito maligno havia perturbado, nada percebia. Contudo, quando lhe foi apontado o que chamava a atenção de todos, estremeceu ao pensar que talvez seu esposo não fosse cristão. Perguntou-lhe com angústia se os rumores que corriam a seu respeito eram verdadeiros. Ele negou a princípio; mas, instado a fazer o sinal da cruz, só conseguiu fazê-lo de maneira incompleta; levado à igreja, sentiu-se repelido. Então confessou seu crime e, abrindo o coração à esposa, contou-lhe, gemendo, como se entregara ao diabo.

A jovem, aterrorizada, correu imediatamente a lançar-se aos pés do santo bispo Basílio, que governava a Igreja de Cesareia. Expôs-lhe toda a extensão de sua desgraça. O grande santo não procurou aumentar temores já tão vivos. Mandou chamar o marido culpado e, assim que ouviu de sua boca tudo o que se passara, perguntou-lhe com doçura se queria voltar ao Senhor Jesus e se o queria sinceramente.

— Ai de mim, sim — respondeu o pobre homem, que, através do que lhe parecera a felicidade completa, já não conseguia reencontrar a paz da alma —; mas, acrescentou, esse retorno já não está em meu poder, pois entreguei-me ao inimigo de Deus.

— Não desesperes, contudo, meu filho — retomou o santo —; Deus é sempre misericordioso; perdoa sem se cansar. Se detestas de todo o coração tua apostasia, Ele a apagará; devolver-te-á sua graça e seu amor.

Vendo então o infeliz em prantos, fez sobre ele o sinal da cruz. E, como ele se entregava com completa submissão às mãos de seu bispo, o bom prelado encerrou-o numa cela, exortando-o a rezar a Deus durante três dias.

Ao fim desses primeiros dias de penitência, o santo veio perguntar-lhe como se sentia.

— Extremamente fraco — respondeu o jovem. — Durante esses três dias em que me deixastes sozinho, não cessei de rezar e, quanto pude, de implorar meu perdão. Mas fui incessantemente esmagado pelos clamores e reproches dos demônios. Rodearam-me continuamente, tendo nas mãos o pacto abominável que entreguei ao seu chefe, e diziam-me: “Vê, pérjuro, este escrito que assinaste com teu nome. Não fomos nós que te procuramos; foste tu que vieste a nós em tua aflição.”

— Não os temas, meu filho — disse Basílio —; nada podem contra ti quando tua alma está elevada a Deus.

Fortificou-o novamente com o sinal da cruz e, dando-lhe um pouco de alimento, tornou a encerrá-lo por mais três dias.

Depois de deixá-lo, Basílio pôs-se ele próprio em oração pela ovelha desgarrada; e, passados esses outros três dias, veio perguntar-lhe ainda como se sentia.

— Um pouco melhor, meu pai e meu senhor. Já não vi os demônios; mas ouvi seus gritos e ameaças à distância.

— Pois bem — disse o santo —, ainda um pouco de paciência. Continua a rezar, meu filho, e salvarás tua alma.

Abençoou-o de novo, deu-lhe alimento e encerrou-o pela terceira vez.

Na nova visita do santo prelado, o penitente declarou-lhe que suas vigílias haviam sido tranquilas; mas que, em seus momentos de sono, vira o próprio santo bispo combatendo e derrubando o demônio.

Então São Basílio mandou chamar o clero, os monges e o povo; e, tomando o penitente pela mão, conduziu-o à igreja, onde o infeliz sentiu com alegria que podia entrar sem sofrer. O chefe dos demônios chegou ao mesmo tempo, com a escolta que fora testemunha do pacto, e exclamou:

— Cometes uma injustiça contra mim, Basílio. Este homem é meu servo; não o seduzi: foi ele que veio pedir-me auxílio, e eis o pacto que assinou de próprio punho.

O clero, os religiosos e os fiéis cantaram então o Kyrie eleison, enquanto o demônio tentava arrebatar o penitente. Mas o santo bispo, cujo apoio ele reclamava sem cessar em seu pavor, segurava-o pela mão.

— Espírito abominável das trevas — disse então Basílio —, tua condenação não te basta? Não cessaremos de rezar enquanto não devolveres o pacto que prende este pobre pecador; e nossas orações o arrancarão de ti.

O demônio, repelido pela santidade de Basílio, uivou em vão. Por fim, voou embora, largando o pacto, que foi lido e reconhecido diante da multidão estremecida; e, depois de rasgá-lo e queimá-lo, o bom bispo devolveu à filha de Érard o seu esposo, suficientemente marcado pelo perigo do qual a Igreja o livrara para viver doravante como cristão.

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VII — O PACTO DE TEÓFILO

Espontaneamente entregou, escrevendo, a carta de sua própria perdição, na qual declara querer ser companheiro dos espíritos negros nas penas eternas pelos séculos.

Hroswitha, Lapsus et conversio Theophili

Hroswitha (Rosvita), a ilustre abadessa de Gandersheim, no ducado de Brunswick, e uma das raras maravilhas literárias da Idade Média, dedicou um de seus poemas à história que acabamos de ler e outro à queda e à conversão de Teófilo. Não traduzimos esses poemas, pois somos apenas narradores apoiados em documentos e não podemos acrescentar os detalhes que a poesia se permite, a menos de advertir o leitor.

Mas essa história é célebre e atraiu a atenção de muitos escritores eminentes, de alguns poetas e de numerosos eruditos.

Os bolandistas, que a relatam em seu primeiro volume de fevereiro, citam o testemunho de uma testemunha ocular, Eutíquio, bispo de Constantinopla e contemporâneo do acontecimento; as menções de Paulo, o Diácono, de São Pedro Damião, de São Bernardo, de São Boaventura, do beato Alberto Magno; depois deles, os relatos de Metafrastes, de Surius; o poema de Hroswitha, o de Marbode e um grande número de hinos. Acrescentemos ainda os poemas de Rutebeuf, de Gautier de Coincy e os cantos de vários outros trovadores da Idade Média.

Os artistas também se ocuparam desse tema; e a intervenção da Santíssima Virgem em favor de Teófilo inspirou, em particular, uma notável escultura do século XIII, que adorna o portal norte de Notre-Dame de Paris.

Perdoe-se este preâmbulo, e passemos ao relato.

Pouco antes da invasão dos persas no Império Romano, no ano de 538, havia na cidade de Adana, na Cilícia, um sacerdote ou diácono chamado Teófilo, que exercia junto ao bispo as funções de ecônomo ou tesoureiro. Sua conduta era tão santa e ele cumpria os deveres de seu cargo com tamanha caridade que todos o veneravam. Os pobres e necessitados o abençoavam; todos os que sofriam encontravam nele um coração de pai. Era tão estimado que, à morte de seu bispo, quiseram elevá-lo ao episcopado. O desejo unânime da diocese esbarrou em sua humildade. O metropolita da província também não teve mais sucesso e, admirando a modéstia de Teófilo, teve de ceder às suas súplicas e enviar outro bispo.

Ora, como acontece com todos os que fazem o bem, Teófilo tinha inimigos entre os que seguiam o caminho contrário. Alguns, invejosos de sua boa reputação, o difamaram junto ao novo prelado. Nada é tão fértil em recursos quanto a calúnia: ela sabe encontrar, nas maiores virtudes, os maiores vícios, e dez caluniadores um pouco ardorosos podem matar um homem de bem na estima de um milhão de pessoas. Somos, em geral, tão imperfeitos e cheios de falhas que raramente a calúnia deixa de nos seduzir quando nos mostra que aqueles que veneramos são piores do que nós. O novo bispo, levado pelos relatos mentirosos que lhe apresentavam, afastou Teófilo, retirando-lhe suas funções; e os infelizes, privados de seu apoio, não foram ouvidos.

Quem teria acreditado que a humildade, tão bem enraizada em Teófilo, se ofenderia com essa medida? Mas, infelizmente, assim como preferimos as cruzes e expiações que escolhemos àquelas que Deus nos envia em sua sabedoria, até os mais humildes nem sempre possuem a humildade que aceita as humilhações, e muitos chegam a resistir a elas. Foi o que aconteceu com Teófilo. Sua humildade tinha limites. Ele se irritou com a humilhação; e isso era desertar de Jesus Cristo, que foi saciado de humilhações e nos disse que não podemos nos salvar sem segui-lo.

Ferido pela desgraça, privado das ocupações que lhe eram caras, lançado numa vida inativa, não pensou que o ócio não existe para o cristão, que, sempre e em toda parte na presença de Deus, tem tanto a fazer pelos cuidados de sua alma. O abatimento e a tristeza atraem o demônio quando sua causa é puramente humana. Ele deixou Satanás entrar em seu coração e, uma vez ali, Satanás lhe inspirou o desejo de desmascarar as calúnias e de se vingar. Sua alma, tornando-se sombria, encontrou alívio nessa esperança. Aquecido por esse sopro perverso, não hesitou. Numa noite escura, foi procurar um mago célebre da cidade; obteve facilmente uma entrevista com Satanás, numa encruzilhada onde, para obter plena reparação, teve de renegar o Filho de Maria e a própria Maria, adorar o demônio e assinar com seu sangue um pacto formal que o entregava ao inferno. Selou-o com seu selo e, após esse ato, voltou para casa cheio de esperança.

No dia seguinte, o bispo, esclarecido não se sabe como e reconhecendo a falsidade dos relatos que lhe haviam feito sobre Teófilo, mandou avisá-lo de que estava reintegrado em seu cargo. Teófilo agradeceu ao demônio que o servira com tanta rapidez e foi ao encontro do bispo, que imediatamente o apresentou ao clero e ao povo como um homem que acabara de ser vítima de calúnias odiosas e que merecia, no mais alto grau, a estima pública. O bom prelado chegou mesmo a pedir-lhe perdão pelo ocorrido e declarou que depositava nele uma confiança sem limites. Teófilo retomou, assim, o curso de suas boas obras e passou a ser mais considerado do que nunca.

Entretanto, sua situação era singular. A irritação apaziguada, ele refletiu sobre sua vida e, pouco a pouco, compreendeu gradualmente a ofensa espantosa que havia cometido. Voltou a fazer o bem, e as insinuações sopradas pelo espírito do mal lutavam agora contra remorsos que eram graças. Mas como reparar? O demônio, que ele acreditava tê-lo reerguido, poderia derrubá-lo novamente. Nessa nova angústia, impôs a si jejuns, vigílias e orações. A oração nunca é vã; é um ímã que atrai graças até para o mais culpado. Sentiu-se inspirado a recorrer àquela que também havia renegado de modo ultrajante: a Mãe da misericórdia.

Sofria na igreja e só entrava nela à força. Durante quarenta dias, foi, à meia-noite, à porta de uma capela da Santíssima Virgem e, até o retorno da luz, persistiu em suplicar-lhe, com lágrimas, que tivesse compaixão dele.

Na última vigília do quadragésimo dia, a bondosa e generosa Maria apareceu ao infeliz, mas com trajes de rainha e uma majestade imponente:

— Desgraçado — disse-lhe —, como ousas dirigir-te a mim depois de me teres renegado tão covardemente na presença de meu inimigo? Ainda se tivesses ofendido apenas a mim, que perdoo tão facilmente minhas próprias injúrias! Mas o que é sobretudo odioso e intolerável é que renegaste também meu Filho adorável, teu Deus e teu Salvador. Pensas que posso apresentar-me a Ele e suplicar por ti?

Teófilo, prostrado, não se desencorajou. Declarando-se indigno de perdão, citou vários grandes pecadores que, depois de terem gravemente ofendido, renegado e traído o divino Mestre, haviam contudo obtido graça. Pediu à Santíssima Virgem que aumentasse esse número e suplicou-lhe, com abundantes lágrimas, que intercedesse por ele.

Maria, tocada por sua dor intensa, prometeu-lhe seu auxílio, se ele abjurasse seu abominável desvario e reconhecesse, de coração sincero, Jesus Cristo como Filho de Deus e juiz dos vivos e dos mortos. Ele o fez com coração penitente, banhando a terra com suas lágrimas. A Mãe divina então o deixou, prometendo-lhe novamente sua generosa intervenção.

Na noite seguinte, ela voltou para anunciar-lhe que o bom Salvador, a seu pedido, aceitava sua penitência e lhe concederia a salvação eterna, se perseverasse. Teófilo, consolado, derramou-se em ações de graças. Contudo, algo ainda o apavorava: Satanás conservava o pacto que o submetia ao poder infernal. Suplicou à Virgem santa, cujo poder é tão temido no inferno, que retirasse esse infeliz escrito, causa de seu terror e de sua vergonha. Três dias depois, acreditou ver em sonho, mais uma vez, a Imaculada aproximar-se dele, tendo na mão o testemunho de sua apostasia. Acordou sobressaltado; mas já não viu nada, senão o pacto, assinado com seu sangue, que a Santíssima Virgem havia colocado sobre seu peito.

O dia nascia e era domingo. Levantou-se imediatamente, passou algumas horas em ações de graças e efusões de reconhecimento e, em seguida, foi à igreja, onde se iniciava a santa missa. Após a leitura do Evangelho, lançou-se aos pés do bispo, pedindo permissão para confessar publicamente o monstruoso pecado que havia cometido. Expôs todos os fatos diante da multidão dos fiéis. Mostrou o pacto que o ligara ao demônio e pediu à Igreja que o perdoasse. O bispo, abraçando-o, quis reconciliá-lo de imediato; mas pediu que antes o pacto maldito fosse rasgado e queimado, o que se fez enquanto o povo clamava por misericórdia.

Ao fim da missa, o penitente recebeu a santa comunhão e, logo em seguida, foi tomado por uma febre que rapidamente completou sua expiação, pois morreu ao cabo de três dias, bendizendo seu Deus. E a Igreja o honra, no dia 4 de fevereiro, como penitente.

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VIII — BRUNEHAUT


Era, afinal de contas, uma mulher de gênio,

e cujos monumentos permaneceram.

(Chateaubriand)

Se tivéssemos muito a dizer sobre Brunehaut, começaríamos pela prudente advertência oratória de M. de Chateaubriand:

“Não se deve acreditar nem em todo o bem que alguns disseram de Brunehaut, embora seja mais doce e mais honroso para a humanidade crer no bem, nem em todo o mal que outros contaram a seu respeito, os quais, aliás, não foram seus contemporâneos.”

Foi ela quem restaurou, no norte das Gálias, as antigas vias romanas, e é em sua memória que a estrada militar que vai de Cambrai ao mar, passando por Arras e Boulogne, ainda hoje se chama Chaussée de Brunehaut.

Aqui não temos a expor senão uma tradição popular, geralmente difundida no Artois e na Flandres, a respeito das obras dessa estrada; e tomaremos os fatos de um erudito antiquário do Pas-de-Calais, que os recolheu com cuidado.

Na guerra travada entre Brunehaut e seu marido Sigeberto, de um lado, e Frédégonde com seu rude esposo Chilperico, de outro, Brunehaut compreendeu, com pesar, que as estradas, arruinadas no Artois e na Flandres, tornavam quase impossível o transporte de suas tropas até Tournai, onde Chilperico se fortificava às pressas. Empreender por meios humanos a restauração dessas estradas, antigas vias romanas, seria obra não de alguns dias, mas de vários anos.

Ela mandou chamar um daqueles homens que a história encontra de tempos em tempos em nossas velhas crônicas, e que mantinham, por meio de certa magia, relações com os seres sobrenaturais. Satanás, evocado, apressou-se em aparecer, ávido como estava da alma de Brunehaut. Como hábil diplomata, compreendeu o embaraço da jovem rainha e mostrou-se ao mesmo tempo flexível e absoluto, como um grego do Norte.

— Eu faço a sua estrada — disse ele. — Faço-a inteira, rápida e bem feita, cômoda e sólida; e sem outra condição além desta: a obra entregue, sua alma será minha.

A nobre dama não estava disposta a vender-se tão facilmente. Queria uma chance de escapar das garras de Satanás; e a negociação era espinhosa, pois ambos eram astutos e desconfiados. Enfim, sempre como um grego do Norte, o diabo cedia muito pouco, e a rainha estava tão pressionada que, depois de longos debates, assinou com seu próprio sangue o contrato que entregava sua alma ao construtor da estrada, caso o trabalho estivesse concluído antes do canto do galo.

Imediatamente Satanás chamou suas legiões; e um minuto depois ouviu-se, ao longo de toda a linha, um ruído espantoso. As encostas das colinas distantes rasgavam-se por todos os lados; seus detritos, lançados com estrondo, vinham encher os vales; rochedos inteiros, arrancados das entranhas da terra, rolavam até o fundo dos pântanos e iam assentar, sobre uma base sólida, a nova estrada. Aqui e ali, tochas de luz lúgubre iluminavam com clarões pálidos esse canteiro infernal e lhe davam um aspecto aterrador.

Testemunhas desse terrível espetáculo, os bons camponeses das aldeias, julgando ver a hora do Juízo Final, permaneciam prostrados diante de seus crucifixos.

Entretanto, a estrada avançava com uma rapidez que só se pode imaginar comparando o ritmo do trabalho à corrida de uma locomotiva lançada a toda força. A meia-noite mal havia soado, e o inferno já se preparava para completar sua obra, nivelando o trabalho improvisado. Mas, se o diabo era astuto, a bela dama não o era menos; e ela pouco se preocupava em se entregar a seu feroz adversário. Não podendo lutar corpo a corpo, tentou um engenhoso estratagema, repetido desde então, mas do qual, dizem, pode reclamar a ideia original. Dirigiu-se silenciosamente a um galinheiro próximo e ali, sacudindo seu vestido de seda e iluminando com um fogo vivo e rápido a gente galinácea, despertou subitamente os galos, que começaram imediatamente a cantar e anteciparam o prazo estipulado pelo contrato fatal. O diabo, espumando de raiva, quebrou as ferramentas que serviriam para nivelar a estrada e desapareceu, cheio de vergonha, com sua legião rugidora. (1)

Segundo uma tradição acessória, a pedra de Hollain, no Tournaisis, mais geralmente chamada pedra de Brunehaut, e considerada pelos sábios como um monumento druídico (ela emerge do solo a uma altura de cinco metros), é um fragmento de rochedo lançado ali pelo diabo no momento em que o expediente de Brunehaut o pôs em fuga.

Devemos citar, após esse relato, uma lenda que termina igualmente de modo feliz e por um estratagema semelhante. Ver-se-á mais adiante que o diabo, como aqui, foi muitas vezes apanhado em suas próprias armadilhas.

[COMENTÁRIO NOSSO: O texto não conta que Brunilda, que dá nome a estrada citada, teve um fim horrendo e macabro: "...foi amarrada aos pés de cavalos selvagens e despedaçada. Finalmente, morreu. Seu túmulo final foi o fogo. Seus ossos foram queimados". Isto é, segundo as teorias de Plancy e outros, pode-se até enrolar os demônios, mas pacto é pacto, e um dia ele será cobrado]. 


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IX — O CELEIRO DO DIABO


Não façais negócio com o diabo.

— Provérbio bretão


Embora a história do Celeiro do Diabo se apoie apenas em relatos populares, e embora esses relatos sejam um pouco contestados, a tradição oral que a conservou constitui uma crença quase universal entre as pessoas simples.

Há muito tempo, aliás, esse celeiro está de pé num recanto da Flandres; aqueles que o viram ser construído já não pertencem mais a este mundo, e não nos foi possível descobrir a época exata em que foi edificado. Naquele tempo, a fazenda de Hamelghem era ocupada por um homem laborioso e ativo, chamado Jean Meulens. Ele vivia feliz do produto de sua propriedade, que cultivava com seus irmãos, dos quais era o amparo. Havia se casado com uma jovem mulher a quem amava, e que, pela segunda vez, estava grávida. As colheitas tinham vindo ricas e abundantes; raramente se apresentara um ano tão belo; as safras eram esplêndidas; a situação de Jean era próspera, e sua sorte digna de inveja, quando, numa cruel noite do mês de agosto, o raio caiu sobre seu celeiro e o reduziu a cinzas, sem deixar um só fragmento de viga.

Era o momento em que se ia recolher os grãos; belas colheitas, frutos felizes de um ano de trabalhos, de um céu indulgente e de uma estação magnífica, jaziam amontoadas nos campos já despidos. E, de repente, faltava-lhes um abrigo. Jean Meulens, que se deitara feliz e abastado, levantava-se com a cruel perspectiva de uma ruína completa; pois toda a sua fortuna estava ali, exposta às chuvas e às tempestades; ele só era rico por causa de suas colheitas. Não tinha dinheiro para reconstruir uma edificação suficientemente grande. E, ainda que possuísse uma bolsa bem cheia, já não tinha tempo para mandar construir. O mês de setembro aproximava-se a passos largos, trazendo consigo a estação das chuvas. Jean não sabia a quem recorrer, a que santo se confiar, nem que resolução tomar.

Três dias após o incêndio de seu celeiro, não tendo conseguido até então senão lamentar-se, sem encontrar saída, Jean passeava sozinho, ao cair da noite, por um caminho cruzado, a alguma distância de sua casa, pensando tristemente na situação embaraçosa em que se encontrava, quando viu aproximar-se dele um homem de estatura mediana, vestido de veludo cinza-ferro, com um chapéu de abas ornado de galões de prata, os pés curtos e disformes, calçados com botinas leves, as mãos cobertas por luvas negras, e caminhando com tal ligeireza que, na sombra do crepúsculo, parecia deslizar pelo atalho.

Ele se aproximou de Jean, saudou-o com polidez e pediu-lhe o caminho para Meysse.

— Não estamos longe — disse o agricultor, saindo de seu devaneio. — Vou conduzi-lo até lá.

O desconhecido agradeceu vivamente; fez a seu guia diversas perguntas que demonstravam interesse por ele. Jean respondia de modo bastante vago. Havia algo que o gelava na extrema palidez do estrangeiro e em seu olhar fixo e ardente. Contudo, ele parecia perceber tão bem as inquietações do camponês que, parando de súbito ao pé de um velho pinheiro secular, apoiando-se em sua pesada bengala, perguntou-lhe de maneira direta a causa das preocupações que pareciam devorá-lo. Jean, como que subjugado, não hesitou mais: contou ao desconhecido toda a sua aflição.

— É só isso? — disse lentamente o homem vestido de cinza. — Era preciso dizê-lo antes. Sou rico e poderoso; posso tirá-lo desse mau passo em que se encontra.

— Oh! Seja bendito, se o fizer — replicou o agricultor, a essas palavras consoladoras. — Nunca o esquecerei; e Deus o verá.

O desconhecido estremeceu; baixou os olhos e permaneceu um instante em silêncio. Depois, retomando a palavra como se fizesse um esforço:

— Posso arcar com as despesas da construção de seu celeiro — disse ele — e fazê-lo tão belo que será o maior da região.

— Eu precisaria, de fato, que fosse grande — respondeu Jean; — mas o tempo urge. Como terminar tão cedo?

— Tenho operários em número suficiente. Se for preciso, estará concluído amanhã de manhã, antes do nascer da aurora, antes do primeiro canto do galo.

O agricultor recuou, surpreso. Perguntou-se quem poderia ser aquele homem. Já ouvira falar de empreiteiros hábeis, mas nunca lhe parecera possível uma atividade como a que lhe era oferecida.

— E que preço dá a esse serviço? — perguntou ele. — Pois devo agir conforme minhas forças.

— Um preço bastante modesto — respondeu o estranho. — Sou um original e tenho minhas ideias. Você me dará seu segundo filho, que em breve nascerá.

— Dar-lhe meu filho! — exclamou ele. — E o que pretende fazer com ele?

— Ele ficará sob minhas ordens; cuidarei dele. O que você pode temer ao confiá-lo a um senhor poderoso que o enriquece?

— Perdão — interrompeu o agricultor. — Onde ficam seus domínios?

— Estaríamos lá em menos de uma hora, se fôssemos um pouco depressa.

O agricultor voltou a ficar em silêncio. Depois disse:

— Não posso dar meu filho.

— Reflita — replicou friamente o desconhecido — e volte aqui amanhã à mesma hora.

Jean voltou para casa extremamente preocupado. Não disse nada à esposa, nada a ninguém; mas não dormiu a noite inteira. Quebrou a cabeça tentando descobrir quem poderia ser aquele homem extraordinário. Seria um príncipe? Um rico negociante? Um feiticeiro? Um demônio? Rejeitou essas últimas suposições, prendendo-se à ideia de que lidara com algum senhor caprichoso. Contudo, sentia entranhas paternas demasiado ternas para entregar assim seu filho ao acaso; prometeu a si mesmo não retornar ao encontro.

Mas logo pela manhã uma grande tempestade irrompeu novamente. Torrentes de chuva caíram sobre a terra. As colheitas que permaneciam sem abrigo sofreram cruelmente. Jean chorou de dor; e, pensando que sua esposa e seu filho primogênito logo passariam a padecer na miséria, viu com menos pavor o sacrifício de seu segundo filho. Pensou que talvez o estranho, que o comprava tão caro, quisesse fazer sua felicidade, sua fortuna; que errava ao rejeitá-lo; e chegou ao local do encontro antes de todos.

Suas reflexões eram amargas. Era quase noite cerrada quando ouviu um leve ruído; os ramos do velho pinheiro agitaram-se bruscamente, como se soprasse um vento de tempestade, embora o ar estivesse completamente calmo; e logo Jean viu aproximar-se o homem do chapéu galonado de prata.

— Tenho apenas um instante para lhe conceder — disse ele. — Retorno a Vilvorde. Que decide?

— Ainda não domino meu espanto — disse o agricultor. — O senhor poderia reconstruir meu celeiro, torná-lo o maior do Brabante, e tê-lo pronto numa só noite?

— Antes do primeiro canto do galo, repito. Se o celeiro não estiver perfeito, e se eu faltar a qualquer de minhas convenções, não exigirei o cumprimento das suas.

— E meus grãos, que as chuvas acabam de estragar, poderia espalhá-los, secá-los, recolhê-los?

— Tudo será feito ao mesmo tempo. Além disso, eis aqui uma bolsa contendo mil florins em ouro. Bastará para pagar os danos da tempestade de ontem?

— Oh! Certamente — disse o agricultor, com o coração palpitante.

— Aceite, então, e acabemos com isso.

— Mas… meu filho! Ainda… o que pretende fazer com ele?…

— O mesmo que faço com aqueles que vivem sob minhas ordens e que irão construir para você.

Fez-se novo silêncio; após o que Jean Meulens retomou:

— Quando deverei entregá-lo?

— Eu virei buscá-lo.

— Eu… eu consinto — disse enfim Jean, com um longo suspiro.

— Assine isto, e tudo estará feito — replicou o homem, tirando do bolso uma pequena folha de pergaminho, cuja extrema brancura fazia sobressair a escrita na obscuridade que começava a se tornar profunda.

— Não há aí senão o que combinamos? — perguntou Meulens, com voz trêmula.

— Nada além disso…

O agricultor leu, entretanto; os caracteres eram vermelhos e brilhantes. Ao mesmo tempo, o desconhecido apresentou uma pequena pena de ferro.

— Mas não temos tinta — disse Jean Meulens.

— É verdade. Daremos um jeito nisso.

Imediatamente, com um gesto tão rápido que mal se poderia perceber, o desconhecido picou, com a ponta da pena de ferro, a mão esquerda do agricultor, sob o dedo anelar; um pouco de sangue jorrou. Ele o recolheu no bico da pena, e o agricultor assinou com a mão trêmula.

Assim que terminou, o estranho dobrou o pergaminho e desapareceu como se tivesse alçado voo.

O agricultor acreditava ser joguete de um encantamento. Voltou a se convencer de que sua aventura era real ao sentir sob a mão a bolsa com os mil florins. Retornou à casa, meio temeroso, meio esperançoso, sentindo no coração aquela perturbação inexprimível que deve experimentar um homem que, sem saber por quê, não está satisfeito consigo mesmo.

Era noite escura quando entrou no pátio de sua fazenda. Encontrou-o já repleto de uma multidão de pequenos seres, magros e esguios, mas singularmente ágeis, que carregavam vigas, tijolos, palha, argamassa e tábuas. Trabalhavam com um ardor incrível e num silêncio tão prodigioso que se os via serrar, rachar e martelar sem que se ouvisse o menor ruído. O cimento dos tijolos secava assim que era aplicado. Via-se a obra elevar-se diante dos olhos à luz que irradiava de seus rostos, dos quais pareciam jorrar clarões de fogo.

Jean apavorou-se. Julgou perceber pequenos chifres na testa dos operários ligeiros que trabalhavam em seu celeiro. Pareceu-lhe que tinham garras em vez de mãos e que mais voejavam do que subiam pela escada.

— Teria eu feito um pacto com o demônio? — disse a si mesmo, com o coração dilacerado.

A rapidez do trabalho que se fazia diante de seus olhos e mil circunstâncias inauditas não lhe permitiram por muito tempo duvidar disso. Tremendo a esse pensamento, desesperado com o horror de haver vendido seu filho, abriu aturdido a porta de sua casa, onde a esposa o aguardava para a ceia.

Seu semblante estava tão desfigurado que ela lhe perguntou por que não mostrava mais coragem; pois ainda atribuía sua dor às desgraças de que fora vítima. Ele nada respondeu, senão que estava doente e não podia comer. A pobre jovem o imitou; chorou pelas penas do marido, e, após meia hora de silêncio penoso, esposo e esposa deitaram-se.

O agricultor sentia angústias sufocantes ao pensar em seu filho, que ainda não nascera e que deveria tornar-se presa do demônio. Arrancava os cabelos e batia no peito, entre soluços. Sua dor era tão intensa que a esposa, não podendo mais suportar o espetáculo, lhe disse:

— Jean, há algo que você me esconde. Já não é tudo comum entre nós?

O agricultor hesitou em responder. Mas, por fim, contou tudo à esposa: o encontro com o desconhecido, o pacto assinado e o celeiro que se erguia. A camponesa estremeceu de horror. Levantou-se e fez levantar o marido. A meia-noite acabava de soar nas paróquias vizinhas. Ao pôr o pé no pátio, Jean e sua mulher viram, com terror, o vasto celeiro terminado, os grãos recolhidos, e cem operários ágeis ocupados em cobrir o telhado de palha com uma rapidez assustadora. Sem perder um instante, a jovem mulher, felizmente inspirada, correu até a porta do galinheiro e bateu palmas; restava no alto do telhado apenas uma abertura de duas varas a fechar; o feixe de palha que devia tapá-la lançava-se, levado por um agente ativo, quando de súbito o galo cantou…

Toda a horda infernal desapareceu uivando…

O dia amanheceu; o celeiro estava completamente terminado, exceto o buraco de cerca de dois pés de diâmetro, e o diabo havia perdido.

Tentou-se em vão, até hoje, fechar a abertura deixada no alto desse celeiro. Tudo o que ali se coloca de dia desaparece à noite; mas essa imperfeição nada tem de inconveniente, se for verdade o que se acrescenta: que o granizo, a neve e a chuva ali se detêm como se o celeiro estivesse fechado por um vidro e nada pudesse atravessá-lo.

Quase não há província em que não se mostre, em alguma fazenda afastada, um celeiro mal-afamado a que se dá o nome de Celeiro do Diabo. Em consequência de um pacto com um camponês em apuros, foi sempre o diabo quem o construiu numa só noite; e por toda parte o canto do galo o fez fugir antes que ganhasse sua aposta, pois há sempre um buraco que não foi coberto ou alguma outra coisa que falta em todos esses celeiros.

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X — LENDA DE RODERICO,

O ÚLTIMO REI DOS GODOS


“Que esteja presente a Regra, para que imponha penas justas aos pecados.”

Horácio

O diabo foi mais de uma vez o carrasco de seus próprios aliados. Suidas diz que Cam, o filho culpado de Noé, foi estrangulado pelo diabo. Herodes, Judas e muitos outros, nos primeiros dias da nossa era, não morreram sem deixar a opinião de que o diabo presidira aos seus suicídios. O imperador Valente, esse covarde perseguidor, foi encontrado morto num incêndio aceso por uma mão que bem podia vir de baixo. Seria possível fazer uma lista bastante longa dessas catástrofes. Não citaremos aqui Juliano, o Apóstata, que pertencia certamente a Satanás, mas que foi morto por uma flecha vinda do alto; detenhamos-nos, por ora, em Roderico.

Roderico, o último rei dos godos na Espanha, tornara-se célebre por seus crimes e devassidões no começo do século VIII. Apaixonado pela filha do conde Julião, um dos maiores senhores da Espanha, ele a raptou e depois a devolveu desonrada à casa paterna.

O conde Julião encontrava-se então em embaixada junto aos mouros da África. Assim que soube da desgraça de sua filha, resolveu vingar-se de modo grandioso. Fez vir sua família para junto de si e prometeu aos mouros entregar-lhes a Espanha, se quisessem assegurar-lhe apoio. Sua proposta foi avidamente aceita. O rei dos mouros fez partir um exército, sob o comando do príncipe Muça e do conde Julião. Ele desembarcou na Espanha e apoderou-se de algumas cidades antes mesmo que Roderico fosse informado de sua aproximação.

Havia perto de Toledo uma velha torre, fechada por várias portas de ferro, e que, dizia-se, continha grandes tesouros. Mas havia muito tempo ninguém ousava penetrar nela, pois também se dizia que era encantada. Roderico, cuja vida dissoluta havia dissipado as finanças, necessitando de dinheiro para levantar um exército e ir ao encontro dos mouros que avançavam a marchas forçadas, decidiu visitar essa torre, apesar dos avisos de todos os que o cercavam. As crônicas contam que, depois de percorrer o térreo, onde nada encontrara, mandou arrombar uma porta de ferro forjado, solidamente fechada por vários ferrolhos. Desceu então a uma cripta, onde não viu senão um estandarte de cores variadas, trazendo estas palavras:

“Quando esta torre for aberta, os bárbaros se apoderarão da Espanha.”

Apesar de sua estupefação, Roderico passou dali a uma grande sala abobadada, no meio da qual se erguia uma estátua de bronze que, por um artifício mágico, segundo uns, ou por um procedimento inexplicado, segundo outros, golpeava o chão com uma maça, produzindo grande estrondo. Leu, a alguns passos, na muralha, estas palavras:

“Rei desgraçado, serás destronado por nações estrangeiras.”

Aterrorizado, saiu da torre sem procurar mais nada e mandou fechar novamente todas as suas portas.

Entretanto, os mouros avançavam rapidamente. Roderico era valente; marchou ao encontro deles com um exército bravo, porém pouco numeroso. A batalha travou-se num domingo, ao pé da Serra Morena. Durou vários dias, e houve tão grande número de mortos que ainda no século XVI se viam milhares de cruzes fincadas na terra nos lugares onde ela se dera, no ano de 711. O exército espanhol foi inteiramente destroçado. Roderico, que reinara apenas dois anos, desapareceu de tal modo que se acreditou ter sido levado pelo diabo.

Aqueles de seus fiéis que procuravam seu corpo no campo de batalha encontraram apenas seu cavalo e sua coroa à beira do Guadalete. Espalhou-se o rumor de que anacoretas retirados na Serra Morena haviam visto sombras negras arrastando pelos pés um guerreiro meio despido, no qual acreditaram reconhecer Roderico. Viram também erguer-se contra ele o espectro da filha do conde Julião, que acabara de morrer precipitada do alto de uma torre e que pedia vingança. Essa cena pode não passar de uma visão; indica, contudo, o horror que inspirava o último rei dos godos.

Podemos colocar, após Roderico, outro rei detestado, cuja morte foi igualmente misteriosa: Guilherme, o Ruivo, filho de Guilherme, o Conquistador e sucessor deste no trono da Inglaterra. Um dia em que estava à caça (no ano de 1100, no quadragésimo quarto ano de sua idade e no décimo terceiro de seu reinado), foi morto por uma flecha lançada por uma mão invisível; e, enquanto exalava o último suspiro, o conde da Cornualha, que se afastara um pouco da caçada, viu passar um grande bode negro, que trazia às costas um homem nu, desfigurado e trespassado de lado a lado por um dardo. Ao que parece, não se apavorou muito com o espetáculo, pois conta-se que gritou ao bode para que parasse; depois perguntou-lhe quem era, quem carregava e para onde ia. O bode respondeu claramente:

— Sou o diabo; levo Guilherme, o Ruivo. Vou apresentá-lo ao tribunal de Deus, que no-lo deixará, pois ele é dos nossos.

Alguns historiadores creem que o diabo aqui oculta ou encobre uma conspiração, como aquela que quis fazer matar Henrique IV por um conjurado misterioso, a quem nossas crônicas chamam o Grande Caçador da floresta de Fontainebleau.

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XI — LENDA DE ROBERTO, O DIABO.


“É um demônio! é um demônio!”

— SCRIBE.


Sob o domínio de Carlos Martel, essa parte das Gálias que se encarregou de perpetuar o nome dos normandos possuía um duque bastante distinto, chamado Aubert. E embora a história moderna mencione Guilherme, o Conquistador, e seu sucessor no trono da Inglaterra como os primeiros reis, ele foi apenas o terceiro soberano desse país. As Crônicas e excelentes feitos dos duques da Normandia (Paris, 1535, in-4º gótico) observam com muita precisão que antigos escritos estabelecem formalmente a existência de dois duques antes de Rollon.

Aubert, o primeiro desses duques, possuía perto de Rouen um castelo chamado Tourinde ou Thuringe, em lembrança de sua pátria, pois viera do país dos tongros ou dos turingianos. Estabelecido por ocupação ou conquista numa grande província do reino da Nêustria (nome então dado à parte das Gálias próxima ao mar, enquanto se chamava Austrásia a outra parte limitada pelo Reno), Aubert desposou uma princesa que alguns dizem ser filha do duque dos borgonheses, e que outras autoridades afirmam ser filha do soberano da Bretanha, seu vizinho. Essa princesa chamava-se Ynde ou Ylde, abreviação de Mathilde, segundo vários eruditos. Era nobre e bela, porém viva e impaciente.

Aubert é apresentado em muitas lendas como um príncipe valente, corajoso e temente a Deus. Seus feitos guerreiros animaram crônicas infelizmente perdidas. Havia sete anos que eram casados, e não tinham filhos. Sua desolação era grande. O duque, desesperado, exclamou um dia, de maneira funesta, que, se o diabo quisesse lhe dar um filho, ele o consagraria a ele de bom grado, antes que morrer sem descendência.

Quer o Céu tenha permitido o cumprimento de tal imprecação, quer a duquesa, como relatam certas tradições, tenha feito um pacto com um judeu necromante, ela deu à luz, após um longo e doloroso parto, um filho a quem deram o nome de Roberto.

Tristes prodígios acompanharam esse nascimento. O céu se cobriu de nuvens e inchou-se de tempestades; o trovão ribombava; os ventos uivavam desencadeados. O palácio dos duques parecia em chamas. Muralhas fenderam-se; uma torre desabou. Um morcego, penetrando no quarto de Mathilde, apagou as lâmpadas com suas asas. O duque, todo entregue à alegria, não percebeu esses sinistros presságios e já não pensava em seu voto detestável.

Mandou batizar o filho, que lançou gritos horríveis ao receber a água benta; depois disso, a criança maldita espirrou três vezes; logo lhe nasceram três dentes; todos os outros surgiram em poucas horas, e ele mordia suas amas. Seu ar feroz, seu olhar espantoso de maldade, seus dentes agudos, aterrorizavam de tal modo todas as mulheres que logo nenhuma quis mais cuidar dele, sendo necessário alimentá-lo com uma trompa. Seus gritos roucos e selvagens faziam todos fugir.

Assim que pôde manter-se de pé, foi ainda pior. Diz-se que, com um ano, andava, falava e já se fazia obedecer. Aos dois anos, atirava à cabeça de quem se aproximava tudo o que podia apanhar. Aos três anos, batia e feria os criados e os pajens. Aos quatro anos, espancava meninos e meninas, que fugiam à sua vista. Aos cinco anos, passou a ser chamado Roberto, o Diabo. Era tão perverso e causava tantos males que, “era uma maravilha”, diz a Crônica da Normandia, “que a terra não se abrisse sob seus pés”.

Quando completou sete anos, sua mãe quis que aprendesse as letras. Aprendia com grande facilidade, mas tornava-se apenas mais mau. Terror das crianças e dos servidores, não respeitou o mestre; contam-se indignas travessuras que lhe fez. Um dia, tendo pregado ao chão as pantufas do pedagogo, chamou-o com insistência, dizendo:

— Senhor, sois chamado por meu senhor, o duque.

O erudito apressou-se em calçar os pés, quis lançar-se para a frente e estendeu-se no chão com uma queda pesada, da qual ficou meio deslocado.

Acrescenta-se que, castigado por essa selvagem travessura, Roberto, o Diabo, não guardou muito tempo o rancor: matou o pobre velho dois dias depois e, pisoteando o cadáver, disse-lhe:

— Eis aí por tua ciência; e doravante jamais clérigo ou outro qualquer será meu mestre.

Ele só respeitava sua mãe, que o amava apesar de todos os seus vícios, e temia seu pai, a quem via pouco; aliás, escondia-se do duque a maior parte das malfeitorias do pequeno príncipe.

Embora fosse de casa rica, entregava-se a furtos e tinha prazer em roubar, talvez porque encontrasse nessas incursões a alegria de espancar aqueles que saqueava. Certa noite, ao furtar frutos de um jardim, o dono do lugar, que não o conhecia e era homem robusto, correu contra ele brandindo um enorme bastão. Roberto fugiu, escalou um muro, atirou ao chão algumas moedas de prata e, enquanto o jardineiro se abaixava para apanhá-las, lançou-lhe uma grande pedra na cabeça.

Todos os dias surgiam queixas de tais desmandos, dentro e fora do palácio. O duque, que disso sabia algo, viu com satisfação aproximar-se a época em que poderia fazer seu filho cavaleiro, esperando que uma circunstância tão solene o reformasse por completo.

Roberto tinha dezessete anos quando seu pai decidiu fazê-lo calçar a espora de ouro. Para cerimônia tão grande, escolheu o dia da Natividade de São João Batista, anunciou belas festas e mandou proclamar um torneio ao qual convocava os bons cavaleiros.

Na véspera, o duque deu sábias instruções ao filho, exortando-o a repelir doravante as loucas malícias e os desvios da juventude; que ele se tornaria homem e mais que homem, cavaleiro com direito de portar espada e lança, de ir à corte e de ter seu estandarte.

Depois enviou-o, segundo o costume, a fazer a vigília das armas na igreja da abadia de São Pedro, chamada depois São Ouen. O jovem, que mal conseguia conter-se uma hora, foi à igreja ao cair da noite, mas ali não permaneceu muito tempo; e, em vez de passar a noite em recolhimento e oração, apressou-se em sair de Rouen e foi divertir-se à sua maneira a uma légua dali.

Na manhã do dia em que devia ser armado cavaleiro, o duque Aubert e todos os convidados ouviram a santa missa na igreja onde Roberto deveria ter velado; mas o jovem príncipe não apareceu. Procuravam-no com inquietação. Ele só voltou no momento em que os clarins anunciavam a abertura do torneio.

Vestiram-no às pressas com as boas armas que seu pai havia preparado; depois o duque o apresentou à numerosa assembleia, que o saudou; e, tocando-o com a espada, sem notar o olhar feroz que o orgulho de seu filho lhe devolvia nesse gesto, disse em voz alta:

— Em nome de Deus, de São Martinho e de São Dênis, eu vos faço cavaleiro.

Em seguida deu-lhe a acolada, fez-lhe calçar a espora de ouro, entregou-lhe a espada e a lança; e Roberto montou a cavalo, assumindo um porte tão altivo que muitos viram em sua atitude algo mais que nobreza.

Proclamou-se imediatamente a lei do campo fechado, aberto diante do palácio dos duques. Pendiam diante do estrado das damas os dois prêmios da justa: um colar de ouro e uma faixa. Todos os combates deviam travar-se com armas corteses, isto é, espadas sem fio e lanças embotadas.

Tomando lugar os juízes do campo, começaram as lutas. Roberto lançava-se com tamanha violência que derrubou vários cavaleiros; mas, como outros se mostrassem mais firmes, pareceu enfurecer-se; e, tendo-se retirado por um momento à sua tenda, não tardou a reaparecer com outras armas, mortíferas, contra a lei do cartel. Só se reconheceu essa traição quando ele feriu dois cavaleiros que não mais se levantaram.

Ao ver a arena ensanguentada, o duque lançou ali seu guante para pôr fim a esse combate desleal; mas Roberto não deu atenção, e, correndo indistintamente sobre todos os cavaleiros, com uma fúria desenfreada que fez supor que ainda estivesse embriagado de sua abominável orgia, matou metade dos participantes do torneio.

O duque Aubert, tremendo de horror, espanto e cólera, ordenou a todos os seus homens de armas que prendessem o traidor, vivo ou morto; mas, de imediato, Roberto fugiu e escapou sozinho, ganhando os bosques.

Desde então, esse cavaleiro não foi mais que um bandido.

Reuniu à sua volta trinta brigantes e começou a percorrer a Nêustria, causando por toda parte males ainda maiores do que os que já havia feito. Seu pai enviou contra ele homens de armas encarregados de capturá-lo e trazê-lo de bom ou mau grado. Uns desses homens Roberto matou; outros fez entrar em sua quadrilha; e aqueles prisioneiros que lhe resistiram, devolveu-os ao duque com os olhos vazados ou as mãos cortadas, encarregando-os de dizer-lhe que não era tão fácil prendê-lo quanto planejar fazê-lo.

Mandou construir na floresta uma fortaleza que se tornou um horrendo covil. À frente de uma multidão de homens de toda espécie — ladrões, assassinos, salteadores de estrada, bandidos dos bosques, proscritos e excomungados —, Roberto tornou-se o terror do país. Só saía de seu antro para saquear igrejas, devastar conventos ou incendiar castelos. Quando tomava uma abadia, espancava os monges, pilhava as provisões e levava seus cavalos.

De todos os lados elevavam-se queixas tão grandes que o duque Aubert declarou seu filho banido e prometeu grandes somas a quem o trouxesse prisioneiro, fazendo proclamar ao mesmo tempo, a som de trompa, que todo aquele que matasse Roberto obteria perdão. O bandido apenas riu dessas ameaças e, mais perverso do que nunca, veio devastar até as portas de Rouen.

Segundo algumas tradições, um desconhecido que se apoderara do espírito de Roberto e lhe demonstrava grande afeição, impelia-o sobretudo ao mal, excitando-o às orgias, às crueldades, à destruição, aos jogos desregrados, ao sacrilégio e à blasfêmia. Os antigos legendários acreditam que era um demônio, e talvez aquele ao qual seu pai o havia consagrado antes do nascimento. Seus crimes justificam tal opinião. Não havia para ele prazer maior do que atacar o próprio Deus, ultrajando os homens santos a Ele consagrados ou profanando templos e devastando mosteiros.

Esses excessos deploráveis duraram alguns anos. Roberto tinha refúgios por toda parte, e as estradas tornaram-se tão infestadas em todo o ducado da Normandia que já não se ousava viajar sem escolta. Os esforços de Aubert para pôr fim a tal estado de coisas foram infrutíferos; todos os dias surgiam novas queixas e relatos lúgubres.

Certa noite, quando Roberto se retirava com um destacamento de suas bandas, encontrou sete peregrinos que voltavam de Roma. Embora se visse claramente que não tinham ouro nem prata, como traziam consigo piedosos emblemas, Roberto deteve-os e mandou que contassem suas aventuras no meio de um círculo de brigantes; depois, excitado por seu favorito ou seu demônio, passou a dirigir-lhes discursos infames, cheios de abominações descaradas e de blasfêmias odiosas. Os sete peregrinos baixavam a cabeça e rezavam em vez de ouvi-lo.

O cavaleiro, furioso, precipitou-se sobre eles e matou-os um após o outro; contudo, pareceu impressionado pelo fato de que todos esses piedosos mártires, ao cair massacrados por ele, o perdoavam e rogavam a Deus, seu Senhor, que tivesse piedade da alma de seu carrasco.

O último dos sete peregrinos chegou mesmo a dizer-lhe, ao expirar, com voz profética, que ele conheceria o arrependimento e que em breve faria rude penitência. Um começo de remorso percorreu o coração de Roberto; ele voltou silencioso e pensativo. Seus companheiros, surpresos, mandaram-no sentar-se à mesa; e só embriagando-o conseguiram devolver-lhe o que chamavam seu bom humor.

Na manhã seguinte, dirigiu-se ao lugar onde havia matado os sete ermitas. Ignora-se qual era sua intenção, e alguns creram que queria começar a reparar o crime dando-lhes sepultura; mas não encontrou mais seus corpos, que haviam sido levados. Esse contratempo o enfureceu; recaindo em suas frenesis, anunciou à tropa que o acompanhava — composta de vinte homens decididos — que queria ir saquear e queimar, ali perto, o castelo de Arques, pertencente a seu pai.

Gritos de alegria acolheram essas palavras, e ele pôs-se a caminho.

No percurso, encontrou um jovem senhor que se entregava ao prazer da caça. Segundo o Livro das Crônicas e excelentes feitos de armas dos duques da Normandia, era o filho do visconde de Coutances. Roberto correu até ele e decepou-lhe a cabeça num acesso de fúria que o levava a destruir tudo o que tivesse aparência de felicidade.

Os criados do jovem senhor haviam fugido, pálidos de terror. O visconde de Coutances, informado da cruel desgraça que o atingira, saiu com seus homens de armas, perseguiu os brigantes, derrubou e matou todos os companheiros de Roberto e matou o cavalo do furioso. O horrendo bandido escapou através dos bosques, fez seus inimigos perderem-lhe o rastro e, após longa corrida, entrou ao cair da noite, enfraquecido e todo ferido, num pobre eremitério.

— Socorrei-me, padre — disse ele —, pois estou morrendo; e não temais coisa alguma, embora eu seja aquele a quem chamam Roberto, o Diabo.

O ermitão, a essas palavras, começou a fazer o sinal da cruz e a juntar as mãos, rogando a Deus de todo o coração; mas, em breve, entregando-se à vontade divina e refazendo-se do espanto, confortou seu hóspede, deu-lhe de beber e de comer do que possuía, colheu ervas cujas virtudes conhecia, aplicou-as sobre as feridas do brigante, que logo se sentiu grandemente aliviado.

Então o bom solitário o consolou, exortando-o à paciência, mostrando-lhe os grandes perigos do corpo e da alma em que se encontrava, rogando-lhe que retornasse a Deus pela contrição e pela penitência, e depois o abençoou, no caso de vir a morrer.

Tanta mansidão e tanta benevolência tocaram ainda Roberto, que adormeceu pensativo e se sentiu melhor no dia seguinte. Ao despertar, viu o piedoso ermitão que orava a seu lado.

— Quero mudar de vida — disse ele —; mas o que devo fazer?

O santo homem, todo alegre, recomendou-lhe que, se sarasse, fosse a Roma encontrar o santo padre, o único bastante poderoso para absolvê-lo de todos os seus crimes, mediante expiação. Ao cabo de sete dias, Roberto estava curado, e partiu do eremitério munido das instruções do ermitão, a quem prometeu ir imediatamente a Roma.

Quando Roberto havia caminhado por uma hora, encontrou inesperadamente aquele estranho companheiro que dissemos ser considerado por muitos como seu mau demônio.

— Eu vos procurava — disse-lhe este —; há sete dias corre o rumor de que partilhastes a sorte de vossos camaradas; mas eu sabia que estais vivo...

Roberto respondeu-lhe que doravante abandonava a vida de aventuras e que ia a Roma pedir penitência.

O tom sério do cavaleiro fez seu amigo julgar que o momento não era próprio para sarcasmos. Apressou-se em replicar:

— É um pensamento que vos trará estima; mas muitos dos nossos vos seguirão, se consentirdes em ir despedir-vos deles e exortá-los a vos imitar, o que será boa obra e vos fará merecer indulgência.

— Irei, então — disse Roberto.

Pouco depois, passaram a pequena distância do castelo de Arques.

— Eis — pensou ele — o castelo de meu pai, que eu ia pilhar e queimar.

Avistando então um pastor que não o conhecia, perguntou-lhe quem habitava aquele solar; e soube que a duquesa, sua mãe, ali se encontrava naquele momento. O desejo de vê-la para lhe anunciar que não mais lhe causaria aflições o impeliu; e, pedindo ao companheiro que o aguardasse uma hora, aproximou-se sozinho do castelo. Doeu-lhe notar, ao longo do caminho, que homens, mulheres e crianças fugiam diante dele como ovelhas diante do lobo; uns se encerravam trêmulos em suas casas, outros se refugiavam na igreja.

— Ah! grande Deus — disse ele —, por que fogem assim de mim? Eis, pois, o efeito de minhas ações detestáveis!

Tocado por esse sentimento, chegou sozinho à porta do castelo, desembainhou a espada e foi direto à sala onde estava a duquesa, sua mãe. Assim que ela o avistou, empalideceu e quis também fugir.

— Senhora — disse-lhe ele —, temeis-me também? Confiai em minha palavra: enquanto eu viver, nenhum mal vos será feito.

Então aproximou-se dela.

— Senhora — prosseguiu —, suplico-vos que me digais por que sou tão mau e tão cruel. Essa natureza odiosa que há em mim só pode proceder de vós ou de meu pai.

A duquesa, espantada ao ouvir Roberto falar assim, lançou-se de joelhos e lhe disse:

— Meu filho, tirai-me a vida e ponde fim a meus sofrimentos.

Ela dizia isso sabendo bem que, antes de sua gravidez, não havia rejeitado a monstruosa imprecação de seu marido. Roberto respondeu-lhe:

— Ai de mim, senhora! Por que vos faria morrer, vós que me trouxestes por nove meses em vosso ventre? Sempre senti que preferiria suportar mil suplícios a causar-vos o menor mal.

A pobre dama contou-lhe então como seu pai o havia desgraçadamente consagrado ao demônio; como ela aprovara esse crime, considerando-se desde então a mulher mais infeliz do mundo; e pouco faltou, nesse triste relato, para que sua razão se perturbasse. Roberto, depois de ouvi-la, ficou tão abatido que caiu desmaiado. Quando recobrou os sentidos, disse chorando:

— O demônio, reconheço-o, cobiça minha alma; mas desde este momento quero renunciar ao vício e a Satanás, se Deus, em sua misericórdia, me acolher.

Rogou humildemente à mãe que o recomendasse a monsenhor o duque, seu mui honrado pai; disse em seguida que queria ir a Roma confessar todos os seus pecados e que não dormiria em leito, não comeria pão sobre toalha, nem se abrigaria sob um teto, até que o santo padre lho permitisse.

Após essa declaração, despediu-se da mãe; e, enquanto retornava ao lugar onde deixara o amigo, crendo reconhecê-lo de longe, apressou o passo e fez o sinal da cruz — do qual não se persignava havia vários anos. Ao erguer a cabeça, surpreendeu-se por não mais avistar o companheiro, que não encontrou de modo algum. Foi para ele um novo lampejo de luz. Pensou, estremecendo, quem poderia ser aquele estranho que tantas vezes o impelira ao mal...

Contudo, antes de pôr-se a caminho da grande viagem que resolvera empreender, julgou ser ato de humildade abandonar para sempre suas vestes de cavaleiro e de gentil-homem, e também obra meritória converter seus companheiros de crimes.

Retornou à fortaleza que era o principal refúgio de suas bandos. Encontrou os brigantes à mesa, muito alegres por revê-lo. Julgando, por reflexão, que o meio de arrastá-los não era abordar bruscamente o tema da mudança de vida, mas introduzi-lo pouco a pouco, pôs-se a comer e beber com eles, contando-lhes seu encontro com o senhor de Coutances, como havia escapado, e os cuidados do bom ermitão que o curara. Se o acharam mais grave e mais comedido que antes, atribuíram tal disposição de espírito ao cruel revés e à enfermidade.

Depois lhes expôs como, por acaso, havia visto sua nobre mãe no castelo de Arques e as tristes coisas que ela lhe revelara. Os brigantes, excitados pelo vinho, soltaram a esses relatos uivos de alegria sinistra; e, para grande confusão de Roberto, pareceram pouco perturbados em se ver tão de perto aparentados com o diabo, como pessoas que fazem de sua alma negócio vil e de pouco valor; tão verdadeiro é que, uma vez sob a mão de Satanás, que sabe entorpecer todo remorso no tumulto das paixões e nos vapores da mesa, é-se levado muito mais longe do que se poderia prever.

A esses furiosos, que lhe pareciam tornados feras selvagens, disse ainda como acreditava que o sinal da cruz fizera desaparecer o companheiro estrangeiro. Uma nova explosão de riso horrível acolheu essa maravilha; uns pareciam encantados por ter tido o diabo como companheiro; outros invocavam seu auxílio; alguns diziam que Roberto, o Diabo, era bom exorcista.

Por fim, a fúria brilhou nos olhos do cavaleiro; batendo com força na mesa, impôs silêncio. Todos se calaram, pois conheciam o peso de sua cólera; mas ele se conteve.

— Meus amigos — disse ele —, pelo amor de Deus, escutai esta exortação. Sabeis a vida detestável que levamos há tanto tempo, perigosa para nossos dias e ainda mais para a salvação de nossas almas. Não ignorais quantas igrejas pilhamos, quantos mosteiros saqueamos e arruinamos. Não esquecestes tantos bons mercadores despojados e mortos por nós, tantos homens piedosos consagrados a Deus que imolamos, tantos inocentes que enviamos ao túmulo, cujo número é infinito. Nesse grande caminho do crime, estamos em perigo de todos nos perdermos, se Deus não tiver piedade de nós. Estou resolvido a abandonar esse gênero de vida detestável e vos suplico que penseis em fazer penitência comigo.

Ninguém levantou a voz para responder, mas logo se estabeleceram cochichos: “Eis o diabo, cansado, querendo fazer-se ermitão”; “Satanás não pregaria melhor”; “Que ele faça penitência, ele que, mais mau que todos nós, nos mostrou o caminho”. Tais eram as palavras ditas em voz baixa.

— Meus amigos — retomou Roberto —, sei que fui eu quem vos conduziu por esse caminho de perdição. Suplico-vos que mo perdoeis e que vos volteis para Deus, que, mediante penitência, vos fará misericórdia.

Um ladrão, tomando coragem, interrompeu-o:

— Meu senhor — disse ele —, cessai tais discursos. Se fazeis sermão para nos provar, vedes que não nos abalais facilmente e que somos vossos companheiros dedicados a agir como antes; se vossas admoestações são sérias, já não vos reconhecemos como nosso chefe; depois do que fizemos, nenhum de nós pode recuar: aconteça o que acontecer.

— Mas — replicou ainda Roberto —, não quero trair-vos nem abandonar-vos; obterei para todos vós, de monsenhor o duque, meu mui honrado pai, graça e perdão. Iremos a Roma como peregrinos, e quando o santo padre nos tiver absolvido a todos, partiremos de lá para combater os sarracenos.

Todos os brigantes gritaram de comum acordo que não queriam nem graça nem perdão; que permaneceriam em suas fortalezas; que por morte ou por vida não cessariam de pilhar, roubar e matar quando a ocasião se apresentasse, e que no futuro o fariam ainda mais cruelmente que antes.

Roberto imaginou então que o único meio de pôr termo aos excessos de seus companheiros era exterminá-los a todos; e, como era pouco teólogo, acreditou que assim faria uma boa obra. Disse-lhes, pois, que, já que queriam continuar a viver como até então, eram senhores disso; que quanto a ele estava firmemente decidido, com a ajuda de Deus, a levar outra vida; que, contudo, antes de deixá-los para sempre, queria ainda alegrar-se uma última vez com eles.

Ordenou imediatamente que trouxessem a reserva de seu melhor vinho, o que foi feito, e a orgia tornou-se mais animada.

Em meio aos clamores e ao barulho, os brigantes fizeram todos os esforços para levar Roberto a pisotear seus escrúpulos e a permanecer como chefe; mas ele, sem responder, aguardava que estivessem completamente embriagados. Então levantou-se, foi fechar as portas da fortaleza e, armado de uma pesada maça, esmagou todos os seus companheiros, um após o outro.

— Eis aí — disse ele — pagos pelos serviços que me prestaram, e pagos como tais serviços mereciam.

Queria ainda pôr fogo ao covil; mas, temendo os desastres que disso poderiam resultar, não o fez e afastou-se.

Lê-se em alguns relatos que seis de seus companheiros, tendo ouvido suas propostas, foram poupados por ele e fizeram penitência. Não se tem sobre eles outros detalhes.

Antes de se pôr a caminho para sua longa viagem, Roberto quis rever o bom ermitão a quem devia sua cura. Contou-lhe o que acabara de fazer. O servo de Deus suspirou; e, pondo-se a orar com Roberto, perguntou-lhe se não queria fazer a confissão de seus pecados. Roberto consentiu. Foi um quadro pavoroso; e várias vezes o ermitão chorou sobre seu penitente, cujo coração estava profundamente abalado.

Depois que terminou a terrível exposição de todos os seus crimes, o solitário disse-lhe ainda que somente o Papa podia absolver tantos sacrilégios e tantos crimes que se haviam dirigido ao próprio Deus; exortou-o a partir imediatamente para Roma, dando-lhe sua bênção e, tanto quanto lhe era possível, sua absolvição caso viesse a morrer na viagem, contanto que mantivesse o voto de não dormir em leito, de não comer pão sobre toalha e de não se abrigar sob um teto até que o santo padre lhe perdoasse os pecados.

Acrescentou ainda, como outra penitência, que doravante bebesse apenas a água dos regatos, colhida com a própria mão, e que só comesse o que encontrasse no chão ou arrancasse aos cães.

Roberto aceitou essas expiações, achando-as muito leves para seus crimes; e, depostas as armas e todos os adornos de gentil-homem, vestiu uma cilícia e uma túnica de lã que lhe deu o ermitão, e partiu, prometendo ainda não pronunciar uma única palavra até o dia em que pudesse confessar-se ao Papa.

Executou fielmente todas as suas obrigações; e tanto caminhou, diz a crônica, que chegou ao santo padre, o Papa, diante de quem se pôs de joelhos, confessando seu nome, os males e os pecados que havia cometido, e o modo de sua vida passada.

O soberano pontífice, consternado à vista de tal consciência, não duvidou, entretanto, por um instante, da bondade do Senhor, e disse-lhe:

— Meu caro filho, para que possais obter de Deus perdão e misericórdia, durante sete anos não falareis; consentireis em passar por mudo e por insensato; continuareis a não dormir em leito, a não comer pão sobre toalha, a não vos abrigar sob um teto; não vos alimentareis senão do que disputardes aos cães; não fareis mal a quem quer que seja no mundo, de qualquer maneira que vos tratem e de qualquer afronta que vos lancem; e, passados os sete anos, vivereis ainda nessa humildade até que agrade a Deus dar-vos a conhecer sua vontade.

Roberto retirou-se em silêncio, resolvido a obedecer pontualmente; e foi na própria corte do imperador de Roma que quis fazer sua expiação. A crônica não nomeia esse imperador; mas algumas velhas novelas, que pretendem que Roberto, em sua penitência, era tido como o louco do príncipe Astolfo, indicam-nos ao menos a época de sua conversão. Astolfo, como se sabe, era um rei dos lombardos, que usurpou Roma e quis despojar a Sé apostólica, enquanto Pepino, o Breve, reinava sobre os francos.

Nada impede de crer que o rei Astolfo tenha tomado em Roma o título de imperador; e eis o que se lê na coletânea das Crônicas e excelentes feitos de armas dos duques da Normandia, obra que já citamos:

“Roberto fez, pois, durante sete anos, essa rude penitência; e os de Roma, tendo-o por insensato, causavam-lhe muitos vexames, ultrajando-o com palavras e atirando-lhe lama ao rosto; ele tudo suportava pacientemente. Passava as noites sob o degrau do palácio do imperador.

Ora, o imperador de Roma tinha um galgo que nunca abandonou Roberto durante todo o tempo de sua penitência. Quando se dava de comer ao cão, Roberto tomava sua parte; e, quando o imperador soube disso, ordenou que não se fizesse mal algum nem ao louco nem ao cão. Muitas vezes o galgo vinha ao palácio; quando o imperador estava à mesa, chamavam-no, davam-lhe o que queriam; ele levava seu pedaço e ia junto de Roberto, que assim tinha sua refeição.”

Mas esse livro não fala de modo algum das aventuras que se vão ler e que extraímos dos romancistas da Idade Média.

Roberto, vivendo entre os cães e fingindo-se de idiota mudo, levava essa vida de abnegação, de vergonha e de silêncio, resignado, não dando importância à miséria e ao opróbrio que expiavam seus crimes, quando um dia — dizem os autores desses velhos romances, que também eram história para nossos pais — ouviu cavaleiros reunidos lançarem os clamores de guerra. Os sarracenos, atraídos por um traidor que o imperador de Roma não quisera aceitar como genro e que certos relatos chamam Sangredino, chegavam com um exército inumerável.

Roberto sentiu o coração palpitar ao pensamento de que iam combater sem ele. Grossas lágrimas correram de seus olhos; pareceu-lhe que Deus se compadecia dele e que uma voz lhe dizia: “Reveste estas armas, monta o cavalo branco que vês ali, perto da fonte, e vai socorrer o imperador.”

Roberto apressou-se em obedecer a essa inspiração; cobriu-se com a armadura branca que via preparada, lançou-se sobre o cavalo branco e alcançou os guerreiros.

Tradições mais detalhadas dizem que ele marchava por ordem de um velho ermitão, que o visitava às vezes da parte do santo padre, e que viera encontrá-lo expressamente nessa ocasião.

A filha do imperador, tendo visto da janela o que Roberto fizera, bem quis contá-lo à corte; mas era muda de nascença e teve de limitar-se a guardar o fato na memória.

Entretanto, Roberto, lançando-se no meio da maior multidão de inimigos, começou a golpear à direita e à esquerda com tal impetuosidade que se o via decepar cabeças, cortar braços, fender couraças, quebrar elmos e escudos, e não desferir um golpe sem matar um sarraceno; os infiéis puseram-se em fuga.

Roberto, depostas as armas e deixando o cavalo, voltou, sem dizer palavra, para junto de seus cães e retomou sua vida penitente.

O imperador, vencedor, perguntava a todos quem era o valente que o havia salvado. Mas ninguém o conhecia, exceto a princesa muda. Ela esforçou-se por indicar da melhor forma possível o pobre idiota, a quem toda a corte tratava quase como aos galgos seus companheiros; o imperador acreditou que o terror causado pela aproximação do inimigo havia perturbado a razão de sua filha, e afligiu-se grandemente com isso.

Mas, pouco tempo depois, os sarracenos, sempre conduzidos pelo mesmo pérfido, ainda não suspeitado, retornaram com um novo exército mais numeroso que o primeiro. Roberto, encontrando no mesmo lugar o cavalo e as armas que lhe pareciam destinados, lançou-se novamente na refrega, onde realizou ainda mais proezas do que da primeira vez; os sarracenos foram quase todos exterminados por ele. Combatia como um leão que nada teme, e sob sua pesada espada o campo de batalha tornara-se, para o inimigo, um campo de morte.

O imperador, testemunha dessas maravilhas, recomendou vivamente aos que o cercavam que nada negligenciassem para saber quem era esse valente desconhecido, esse cavaleiro das armas brancas.

E, quando a batalha foi vencida, como Roberto novamente se retirasse às pressas, vários gentis-homens correram atrás dele e lhe gritaram:

— Rogamos-vos, da parte do imperador, que nos façais saber quem sois e de que país vindes.

Em vez de lhes responder, Roberto acelerou o passo e apressou ainda mais a fuga de seu cavalo, pois não se esquecia de que não lhe era permitido falar.

Vendo que as preces e os gritos não obtinham resposta, nem por palavras nem por sinais, um dos perseguidores conseguiu alcançar Roberto de bem perto e, para detê-lo, desferiu-lhe um golpe de lança na coxa.

A lança quebrou-se, a ponta de ferro permaneceu na ferida, e Roberto, graças à bondade de seu cavalo, logo desapareceu.

O imperador, desolado por não poder testemunhar sua gratidão ao homem que tão bem combatera por ele, mandou publicar em todas as cidades e castelos que, se o cavaleiro que, com armas brancas e cavalo branco, havia feito em pedaços tantos sarracenos quisesse vir à corte, trazendo o ferro da lança que o ferira na coxa e mostrando sua ferida, teria sua filha em casamento e a metade dos domínios do império.

Estamos, como se vê, em pleno romance de cavalaria.

Com essa notícia, que causou grande alvoroço, o traidor Sangredino — a quem alguns autores embelezam com o título de senescal — tomou armas brancas, simulou uma ferida acima do joelho direito e apresentou-se para desposar a princesa, dizendo que o ferro da lança se perdera. Embora o cavaleiro que havia desferido o golpe julgasse lembrar-se de ter atingido a coxa esquerda, talvez a artimanha do pérfido tivesse sido bem-sucedida, apesar dos sinais de horror da muda, que persistia em apontar o homem dos cães, se o bom ermitão não tivesse vindo até Roberto, trazendo o cavalo e a armadura das duas batalhas.

— Meu filho — disse-lhe ele —, vais lançar o desafio ao traidor que queria entregar o império aos infiéis. Quando o tiveres vencido e ele houver confessado seu crime, poderás romper o silêncio: tua penitência estará terminada. Tirarás do dedo do pérfido um anel de ouro no qual se encontra engastada uma pedra preciosa e o darás à princesa: o Céu a destina para esposa. Adeus, não me verás mais. Nunca esqueças a bondade de Deus.

Roberto, transportado de alegria, fez o sinal da cruz, armou-se com presteza e, montando seu bom cavalo, foi apresentar-se diante do imperador, que muito se surpreendeu ao ver um segundo cavaleiro branco. Sem dizer uma palavra, pois ainda não podia falar, Roberto lançou sua luva diante do impostor, que empalideceu e se perturbou ao apanhá-la. Foi-lhe preciso combater o terrível cavaleiro, cuja força conhecia.

Logo estendido por terra, com a adaga de Roberto sobre a garganta, confessou, ao expirar, todas as suas perfídias.

O imperador desceu de seu trono para ir receber Roberto. O vencedor trazia o anel arrancado ao traidor; colocou-o no dedo da princesa, que imediatamente deixou de ser muda, declarou tudo o que havia visto e estendeu a mão àquele que o Céu lhe dava por esposo. Roberto, que enfim também podia falar, deu-se então a conhecer e contou como, por penitência, havia feito tudo aquilo que se observara.

As núpcias celebraram-se poucos dias depois, com extrema magnificência; em seguida, os dois esposos partiram para a Neustria. Roberto queria rever seu pai e sua mãe, e reconquistar-lhes o afeto e a estima. Mas, durante sua longa ausência, grandes mudanças haviam ocorrido no ducado. Seu pai havia morrido; como já não se tinha notícias de Roberto, um senhor chamado Baudrand apoderara-se da coroa ducal. Não tendo conseguido persuadir a duquesa viúva a dar certa aparência de legitimidade à sua usurpação desposando-o, o rebelde a encerrara numa dura prisão e governava como tirano.

Roberto não teve dificuldade em reunir um exército; venceu os partidários do usurpador, libertou sua mãe — a quem seu retorno encheu de alegria —, mandou executar Baudrand com ignomínia e foi reconhecido duque em Rouen.

Viveu piedosamente com sua esposa, amado pelos grandes e pelos pequenos, fazendo justiça a cada um e mantendo a paz em seu ducado. Teve um filho, chamado Ricardo Sem-Medo, que mais tarde realizou, com o imperador Carlos Magno, grandes feitos de armas para sustentar a fé cristã contra os infiéis.

Tal é o relato dos poetas da Idade Média; e essa conclusão que dão às aventuras de Roberto nos pareceu surpreendente. Mas outros narradores, mais sérios, não a tornam tão suave, e os dias do sacrílego que carregara a consciência com tantos crimes e profanara tantas vezes as coisas de Deus não parecem ter terminado de modo tão tranquilo.

Eis como as Crônicas da Normandia, que já citamos, contam os últimos anos de Roberto. Este livro tem ainda um pouco mais de peso histórico que os romancistas do século XIII.

Algum tempo depois de Roberto ter partido para Roma — dizem as Crônicas da Normandia —, sua mãe, não tendo mais notícias dele, deixou-se tomar por tamanha tristeza que logo morreu. O duque Aubert levou-lhe o luto. Mas mal havia passado um ano quando se casou em segundas núpcias com uma dama de boa linhagem, chamada Berta, da qual teve um filho chamado Ricardo Sem-Medo.

Assim, Ricardo Sem-Medo, que sucedeu a Aubert, era irmão, e não filho, de Roberto, o Diabo.

Essas Crônicas acrescentam que Roberto, quando terminou em Roma os sete anos de silêncio e ignomínia que lhe haviam sido impostos, não pensou em reaparecer no mundo que havia aterrorizado. Mais curvado do que nunca sob o peso de seus pecados, cuja horrenda gravidade sentia plenamente, partiu para Jerusalém, viveu sozinho na austeridade de um pobre eremitério, rezando e chorando sem falar com ninguém; e morreu sob o cilício.

Ele não teve descendência. Seu irmão Ricardo também não teve.

Compreendemos um tal desfecho (1).

(1) Pode-se ver, nas Lendas do Outro Mundo, as tradições segundo as quais Roberto, o Diabo, teria feito — e talvez ainda faça — seu purgatório na terra, nas próprias regiões que aterrorizou com seus crimes.


OBS: A TRADUÇÃO CONTINUA... 

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