Os basilidianos e a ideia de um Cristo “fantasma”
Os Basílides, ou Basilidianos, foram um grupo cristão gnóstico ativo principalmente em Alexandria, no século II d.C., seguidores de Basílides, pensador que buscou conciliar o cristianismo com elementos da filosofia grega e do misticismo oriental.
Um dos pontos mais controversos da doutrina basilidiana era sua visão sobre Jesus Cristo. Diferente do cristianismo ortodoxo, que afirma a encarnação real, a paixão e a morte física de Jesus, os basilidianos defendiam uma posição conhecida como docetismo. Segundo essa visão, Cristo não possuía um corpo material verdadeiro, mas apenas parecia humano, como uma aparência ou manifestação espiritual (Irineu, séc. II).
Para Irineu de Lyon, descreve grupos gnósticos que tem uma visão muito diferente do que hoje se tem sobre a criação do mundo, Deus, Jesus e tudo mais. Por exemplo, ele fala dos Ofitas, que eram uma turminha que veneravam a serpente (ophis, em grego) do Jardim do Éden. Para eles, a serpente não era um símbolo do mal, mas da sabedoria, pois teria revelado o conhecimento (gnose) aos seres humanos. Esse conhecimento ajudaria a humanidade a se libertar do domínio do Demiurgo, o deus criador do mundo material, visto por esses grupos como uma entidade inferior ou até maléfica. Para eles, então, a Serpente ajudou a humanidade a escapar do controle de Deus, visto como um 'babaca', literalmente.
Irineu também descreve a corrente gnóstica fundada por Basílides, que defendia a existência de um Deus supremo, muito acima do criador do mundo material, identificado com o Deus do Antigo Testamento. Segundo essa doutrina, o universo foi formado por uma série de emanações divinas chamadas éons (ou Aeons). A salvação não vinha da fé ou do sacrifício, mas do conhecimento secreto (gnose), que permitia à alma atravessar diferentes esferas celestes e retornar ao plano divino (qualquer semelhança com o Platonismo Original não é mera coincidência, já que o Cristianismo todo, como diria Nietzsche é 'Platonismo para o povo'.
Em suma, seguindo sobre os basilidianos, a matéria, para eles, era vista como inferior e imperfeita. Assim, seria inconcebível que um ser divino supremo sofresse dor física ou fosse submetido à humilhação da crucificação. Cristo, portanto, seria um ser espiritual, um emissário do plano divino, que apenas assumiu uma forma aparente para transmitir conhecimento salvador aos humanos (Clemente de Alexandria, séc. II).
Essa concepção leva a uma das ideias mais intrigantes atribuídas aos basilidianos: Cristo não teria sido crucificado. De acordo com Irineu e Hipólito, eles acreditavam que Simão de Cirene, o homem citado nos Evangelhos como aquele que ajudou a carregar a cruz, teria sido transformado para parecer Jesus e crucificado em seu lugar. Enquanto isso, o verdadeiro Cristo, sendo incorpóreo, teria permanecido ileso, observando o engano dos algozes e rindo de tudo isso (Hipólito, séc. III).
Outras diversas versões desse relato reafirmam que Cristo ria da ignorância humana, por não compreenderem a verdadeira natureza espiritual da realidade. Esse riso não deve ser entendido como zombaria simples, mas como expressão da distância entre o conhecimento espiritual (a gnose) e a ilusão do mundo material. Para os basilidianos, a salvação não vinha do sofrimento físico de Cristo, mas do conhecimento revelado por ele (King, 2003).
Essa ideia de substituição na crucificação não era exclusiva dos basilidianos. Textos gnósticos encontrados em Nag Hammadi, como o Segundo Tratado do Grande Sete (Second Treatise of the Great Seth), apresentam concepções semelhantes, reforçando que essa leitura fazia parte de um universo gnóstico mais amplo (Meyer, 2007).
Do ponto de vista histórico, é importante destacar que essas doutrinas foram combatidas com vigor pela Igreja católica primitiva, especialmente após os primeiros concílios como o Concílio de Nicéia organizado pelo Imperador Constantino entre 20 de maio e 19 de junho de 325 D.C, que buscava afirmar a realidade da encarnação e da morte de Cristo como fundamento da fé cristã. O debate entre ortodoxia e gnosticismo foi central para a formação do cristianismo institucional nos séculos seguintes.
Para resumir rapidamente essa nossa breve reflexão filosófica-histórica, os basilidianos oferecem um exemplo claro de como o cristianismo primitivo foi plural e marcado por disputas profundas sobre a natureza de Cristo. A visão de um Cristo “fantasma”, não crucificado, desafia as leituras tradicionais e revela a complexidade das primeiras interpretações sobre Jesus e sua missão.
Um detalhe curioso sobre essa nossa reflexão, é que ela surgiu enquanto pesquisávamos sobre o livro 'Dicionário Infernal' de J. Collin de Plancy que também trata sobre os Basílides e sua teoria sobre a natureza 'não material', intangível de Cristo, em meio a teorização sobre os Demônios. Sobre os basilidianos, Plancy também reafirma que eles acreditavam que Cristo era um ser inferior tipo um 'fantasma' enviado por Abracax, uma entidade Divina (que de fato criou esse mundo físico), e que estaria abaixo do Deus Supremo (que não desceria 'tão baixo' para criar um mundo para seres animalescos como os humanos). Abracax, segundo várias leituras cristãs, posteriormente, é enquadrado como um Demônio, mas sua natureza e origem, seriam incertas.
E. E-Kan
Referências:
CLEMENTE DE ALEXANDRIA. Stromata. Traduções diversas. Século II d.C.
HIPÓLITO DE ROMA. Refutatio Omnium Haeresium. Século III d.C.
IRINEU DE LYON. Contra as Heresias. Tradução brasileira. São Paulo: Paulus, 1995.
KING, Karen L. What Is Gnosticism? Cambridge: Harvard University Press, 2003.
MEYER, Marvin (org.). The Nag Hammadi Scriptures. New York: HarperOne, 2007.






Comentários
Postar um comentário